Há quem tema, e com razão, pelo gradual apagamento dos símbolos nacionais, substituídos por soluções “modernaças” e muito “inclusivas”, como se verificou no anterior governo socialista, que tomou algumas iniciativas, nesse âmbito, com não pouca ligeireza para não escrever leviandade.

O episódio do novo logotipo desse governo, defendido com os habituais chavões, de harmonia com os vários dogmas da paleta dos “activistas”, foi um deles, implementado mais ou menos à sorrelfa para se tornar num facto consumado.

O dito logotipo, foi revertido – e bem – pelo actual governo, cumprindo, de resto, uma promessa eleitoral, e logo choveram as indignações dos “artífices” de esquerda, reprovando e lamentando a prioridade de Luís Montenegro, que se limitou a honrar um compromisso.

Constou, entretanto, que o controverso logotipo obtivera um prémio nacional de design, o que diz bem da “pobreza franciscana” que vai por aí em matéria de criatividade.

O prémio serviu logo de “arma de arremesso”, como se o facto de o logotipo ter sido revertido fosse um crime de “lesa majestade”, praticado por um “rural”, destituído da mais elementar percepção e sensibilidade artísticas. As esquerdas no poder podem reverter tudo, enquanto à direita, em idênticas circunstâncias, as reversões são intoleráveis.

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Havia, porém, outro atentado na forja. De facto, sabia-se há muito que neste ano se assinalava o quinto centenário do nascimento de Luis Vaz de Camões, o nosso poeta maior, símbolo da literatura e da língua portuguesa.

Pois bem. Apesar de criada a comissão consultiva, em 2021, e nomeada a comissária, a professora catedrática de Coimbra, Rita Marnoto, o certo é que nada mais avançou, nem sequer lhe foi atribuído qualquer orçamento, conforme reconheceu em entrevista, explicando que “são questões que estão um pouco para além da comissária das celebrações”.

E só em finais de dezembro do ano passado é que o ex-ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, se lembrou de publicar um despacho normativo, dando forma ao Comissariado para as Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões, com a incumbência de apresentar o “programa das festas” ao governo, até ao passado dia 20 de maio, o que obviamente não aconteceu. Claro que prazo se esgotou sem vestígios de programa.

Entretanto, passou despercebida a data de 23 de janeiro, consensual entre estudiosos, como sendo a do nascimento de Camões, em 1524. E foi necessário o novo executivo dar corpo, há dias, à estrutura de missão para o comissariado consultivo – que ficou a “marinar” durante dois anos, com a comissária de mãos vazias -, para elaborar, finalmente, o programa das comemorações, que deverão prolongar-se até 10 de Junho de 2025.

Por incompetência, desleixo, ou ambas, o governo de António Costa primou pela displicência em relação a uma efeméride relevante, comprometendo o calendário das celebrações, que há muito deveria estar definido, com o envolvimento de universidades e de outros organismos públicos, além de especialistas camonianos.

A negligência sobrou agora para Luís Montenegro e Dalila Rodrigues, que anunciaram a composição da Comissão para um trabalho em contrarrelógio.

Se em vez de celebrar Camões se tratasse do Rock in Rio, do Web Summit ou de hastear bandeiras e iluminar fachadas de edifícios públicos, com as cores LGBT, incluindo o Parlamento — para comemorar o dia internacional da Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. seja lá o que isso for –, tudo teria sido organizado a tempo e horas.

Camões mereceu do governo socialista o tratamento reservado às insignificâncias sem urgência, aliás, em linha com os “tratos de polé” que sofre a língua portuguesa nas escolas publicas, abrangendo até docentes, como ficou demonstrado nas provas de avaliação a que os professores se submeteram contrariados e cujos resultados foram desastrosos em não poucas situações. “Metade dos professores chumba a Português”, noticiava o JN  em Maio de 2015. Está tudo dito.

Mais recentemente, a somar ao distanciamento socialista em matéria de celebrações camonianas, foi apresentada pela INCM uma bizarra moeda comemorativa, que ficou disponível no catálogo de numismática e que só poderá ser vista como uma prova de mau gosto, ou, mesmo, como uma memória caricatural do autor dos Lusíadas.

No prospecto de lançamento, a Casa da Moeda enfatiza “o rosto de Camões e o escudo das quinas no reverso, com realces coloridos na versão prata”. Aliás, é no mesmo reverso da moeda que se assinala “a efígie estilizada do poeta cego, com uma coroa de louros e uma gola típica do século XVI”. Mas o tratamento conceptual da efigie, ou melhor, a sua interpretação, não abonam a inspiração do autor.

Estranhamente, a moeda comemorativa tem passado no olvido dos media, e assim continuaria, talvez, se não fossem as redes sociais e o Polígrafo a ocuparem-se criticamente do tema. Mas o mal estava feito. E Camões não o merecia.

Enquanto a língua portuguesa e o grande poeta andam aos baldões nos acasos da Cultura e dos programas escolares, sofrendo as mais variadas vicissitudes, a homenagem devida ao quinto centenário do seu nascimento não teve melhor sorte.

No caso das escolas, recorde-se que a revisão curricular que, a certa altura, deixou de fora “Os Lusíadas”, no 10º e 11º ano, chegou a merecer a crítica afiada do saudoso Vasco Graça Moura, ao escrever que “o medo que os programas do ensino secundário revelam perante ‘Os Lusíadas’ traduz um deplorável complexo da esquerda retrógrada que tem vergonha do passado de Portugal”, enquanto acusava a revisão curricular de estar “viciada por uma abusiva componente ideológica”.

Esses complexos não desapareceram. Longe disso. E se a impreparação em português de muitos alunos saídos do ensino secundário é cada vez mais notória, que dizer da opção verificada em algumas universidades, públicas e privadas, ao imporem o leccionamento em inglês…

A pretexto de que as universidades portuguesas são mais procuradas por alunos estrangeiros, sem domínio do nosso idioma, multiplicaram-se os cursos dados exclusivamente em inglês, uma possidonice que marginaliza o português.

Se o plano para as comemorações do V Centenário de Camões adormeceu nas gavetas da burocracia socialista, arriscando agora o improviso, a dois passos das celebrações do Dia de Portugal, que dizer do silêncio sepulcral que recaiu sobre o futuro Museu das Descobertas (ou da Descoberta, ou dos Descobrimentos) que constava nas prioridades do programa eleitoral de Fernando Medina, anunciado em 2017, ao candidatar-se ao Município de Lisboa?

O projecto nunca saiu do papel, perante a oposição assanhada movida pelos sectores mais à esquerda, incluindo académicos “bem-pensantes” e uma Associação de Afrodescendentes, que não tardaram em manifestar-se contrariando o desígnio camarário. E Medina encolheu-se e recuou.

Em junho de 2018 já o autarca eleito confessava que “nasceu uma polémica que se desenvolveu e eu não a vou alimentar.” Foi fiel à promessa. A tal ponto, que não voltou a mexer no projecto até deixar o Município.

Nem nesse nem noutro anterior, datado de maio de 2015, que mereceu, inclusive, uma luzida cerimónia nos Paços do Concelho, para a assinatura de um “protocolo de formalização de interesse” na construção de um núcleo museológico, dedicado aos Descobrimentos, tendo ainda a particularidade, à época, de prever a instalação de uma nau precisamente na Ribeira das Naus.

O protocolo assinado com a Marinha, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e a Associação de Turismo de Lisboa não passou disso.

O projecto “encalhou” ainda antes de sair da doca, embora Medina o tenha defendido como “algo que há muito fazia falta no país e na cidade”, já que “no nosso país não temos muitas histórias para contar ao mundo, mas temos uma história única para contar”. Um ano depois, os zelotas do património e da cultura acharam que o projecto apresentava “uma intrusividade excessiva”. E chumbaram-no. Até hoje.

Se tínhamos – e é verdade que temos – uma história única, esta continua por contar. Ao contrário das ciclovias a esmo, que desfiguraram a circulação em Lisboa — agravando os constrangimentos no trânsito citadino -, o polo museológico ficou “no tinteiro”, abandonado à sua sorte.

De prioridade em prioridade abortadas, a nau e o museu dos Descobrimentos ficaram a “nadar em seco”, e nem Medina nem Carlos Moedas voltaram ao assunto.

Enquanto o novo aeroporto de Lisboa “envelhece” há meio século nos bastidores de interesses cruzados – com mais uma polémica a desenhar-se no horizonte, devido aos lençóis aquíferos subterrâneos e ao estudo de impacte ambiental que farão “correr muita tinta” –, não admira que o Museu, vocacionado para celebrar a nossa Epopeia Marítima, fique congelado “sine die”, em nome dos complexos e das penitências em actos de contrição, reparações, devoluções, e outras autoflagelações para diminuir grandezas passadas.

Somos um País onde vicejam minorias soberanas, que sabem impor a sua vontade e doutrina, com a cumplicidade dos media. E se vamos celebrar Camões com atraso, não se espere que o Museu das Descobertas tão cedo vingue, comparado, como já foi, pela miopia e pelo radicalismo vigentes, à Exposição do Mundo Português, de 1940, organizada em Belém, e considerada «a mostra estética e ideológica do Estado Novo».

Mais afortunado foi o Museu da Resistência, recém-inaugurado na Fortaleza de Peniche, de onde se evadiu Álvaro Cunhal, e onde um ex-presidente do Município, António José Correia, autarca independente eleito pelo PCP, preconizara a instalação de um hotel, no âmbito do programa “Revive”

Embora Correia tenha assumido que “desde que foi eleito, em 2005, se bate por esse projecto”, o PCP não esteve pelos ajustes, “bateu o pé”, desautorizou o seu autarca, e conseguiu que a fortaleza fosse retirada do programa, e requalificada na Assembleia da República para preservação da memória histórica enquanto ex-prisão política da ditadura. E assim ficou. Sem hotel.

Com as Descobertas a “coisa fia mais fino”. Quando a democracia for capaz de ultrapassar embaraços e tiver a coragem de consagrar a História em museu, alheando-se de “velhos do Restelo” e de “activistas” sempre indignados, terá cumprido um passo fundamental para libertar a cidade e o País de modas e agravos de ocasião.

Os 500 anos de Camões seriam uma boa oportunidade. O primeiro passo está dado, ao baptizar o futuro aeroporto de Lisboa com o nome de Luís de Camões, em sua homenagem. Um “golpe de asa”…