“Quero eu e a natureza/que a natureza sou eu/e as forças da natureza/nunca ninguém as venceu”
(António Gedeão, 1958)
Em resposta ao último grande incêndio, ouvimos a ministra Mariana Vieira da Silva anunciar um plano para tornar o Parque Natural da Serra da Estrela melhor que o que estava. As reações variaram entre o choro de quem se sentiu ofendido com a falta de sensibilidade e a galhofa de quem vê aqui o mesmo tipo de promessas inconsequentes feitas nos rescaldos de terra queimada, de Marcelo Rebelo de Sousa a Américo Tomás, passando por António Costa ou Marcelo Caetano.
Mas… seria assim tão difícil tornar o Parque melhor? Com 300% de área ardida desde que nasceu ainda não há 50 anos (alguns com contornos trágicos, casos das mortes em 2017, em 2006, em 1990…)? Com animais que o imaginário popular associa à Serra da Estrela (caso do Lobo), desaparecidos já com a área protegida pelo Estado? Com pastores, rebanhos e cães, queijos e lanifícios à beira da extinção? Depois das promessas, com a criação do Parque, de desenvolvimento rural, revitalização da economia pastoril, apoio ao comércio tradicional, regulação do turismo, ecomuseus, jardins botânicos de espécies de altitude, etc. (Fernando Pessoa, Coleção Parques Naturais, 1978), e a constatação da realidade atual de contínua perda de população humana e suas atividades tradicionais que suportavam a riqueza da paisagem cultural estrelense? Ou, não fosse um qualquer malandrão, estava tudo perfeito?
Não estava. Pelo que vamos recuar agora há 7 mil anos atrás, quando do assentamento megalítico do vale do Mondego, atraído por uma estrela, supostamente Aldebaran, um pastor a seguiu levando o seu rebanho para a Serra… da Estrela (hipótese arqueo-astronómica de Fábio Silva, 2013). Mito ou realidade, o certo é que os trabalhos de Connor et al (2012) com carvões, de Almeida et al (2012), com pólens, ou de Carvalho et al (2017) por pesquisa arqueológica, apontam para o mesmo período temporal o nascimento da paisagem pastoril que, por milénios, dominou a serra. Havia intensa atividade humana, com rebanhos enormes, alguns vindos de terras tão distantes como o mar da Figueira, ou a planície além da fronteira e além do Tejo… E não faltavam os lobos ou o fogo, muito fogo, mas não os grandes e devastadores incêndios das últimas décadas.
Os grandes incêndios resultam da falta de atividades humanas (com vastas extensões onde ninguém pisa há anos, às vezes há décadas) e da falta de fogo (cada vez menos fogo). Stephen Pyne et al (1996) explica-nos porquê: o fogo cria um padrão de mosaicos de vegetação na paisagem e o seu comportamento posterior será largamente determinado por esse mesmo padrão. Contudo, nas últimas décadas, dada a incompreensão da importância e inevitabilidade do fogo, temos acabado com esse mosaico ao modificar a ocorrência de fogo e investindo na sua supressão geral. O resultado da perda do mosaico em que não faltavam áreas ardidas e/ou pastadas, é uma extensão a perder de vista de matos altamente combustíveis, onde um incêndio se torna imparável e potencialmente destruidor.
Volto ao trabalho de 2012 de Simon Connor e aos seus resultados: a Serra da Estrela esteve coberta de gelos na última era glaciar e só há uns 15 mil anos se começou a desenvolver a sua cobertura vegetal, sendo que o citado trabalho analisa uma série de 14 mil anos obtida na Charca da Candeeira, concluindo que esses 14 mil anos, foram 14 mil anos de fogo recorrente. Adaptarmo-nos a isso, à natureza, é possível. Tanto que é possível que assim aconteceu nos últimos 7 milénios! Já querer vencer a natureza, como dizia Gedeão, é uma luta perdida.
Pelo que, sim, não seria preciso inventar a roda para termos um Parque Natural melhor. Seria antes necessário compreender a natureza da serra, o fogo como elemento da natureza, o homem e suas atividades tradicionais como modelo de convivência. Mas estamos muito longe disso. Ainda há dias o ICN enviou uma nota de imprensa à Lusa sobre o impacto dos incêndios na Fauna e Flora e, cheio de certezas, pinta um cenário catastrófico a partir do trabalho de um técnico que, sentado à frente de um computador em Lisboa, se limitou a cruzar a área ardida com a lista de espécies relevantes que para lá estava assinalada. Das 17 espécies citadas, várias são espécies favorecidas diretamente pelo fogo, e a restante maioria espécies não florestais, que acabam indiretamente favorecidas por ele, a que se somam o Teixo, que ainda será avaliado, e o Gato-bravo que por ali já não se vê há muitos anos…
O ICN não sabe? Ou não quer saber (caramba, bastava ler as fichas de espécies e habitats produzidas para o Plano Sectorial da Rede Natura 2000)? E o governo, quer mesmo saber como estão a correr outros planos salvadores, caso de Leiria ou Monchique? Quer mesmo saber porque não funcionam as políticas de coesão? Que interesses espelhará o novo plano, os de quem lá vive e pode contribuir para as soluções ou os do grosso do eleitorado que quer é dar uns passeios por esses jardins do interior? Ou serão estas perguntas demasiado para um anúncio cujo intuito era apenas o de serenar o povo?