Nem todas as profissões ditas liberais têm ordens profissionais. A de arquivista, sim. A de historiador, não. Uma apresenta sinais pulsantes de vida. A outra… nem por isso.

Quando frequentava a Escola Secundária da Madorna, na Parede, fui colega da Maria Mattoso, a filha primogénita do historiador José Mattoso, falecido recentemente (a 8 de Julho). Pelos idos do Inverno de 1987/88 (tinha eu 15 anos), ia estudar Francês a casa da Maria, na Parede, ali para o lado da sede dos Bombeiros Voluntários. Com outros adolescentes, ouvíamos música da época, como o épico A Minha sogra é um boi, dos Mata-ratos (https://www.youtube.com/watch?v=HqkU_5AIR3U). Por essa altura, conheci José Mattoso, que teve a generosidade de me oferecer duas das suas separatas, com dedicatória.

Talvez influenciado por isso – mas também pelos compêndios de história antiga do seu pai, António Gonçalves Mattoso (1895-1975), que herdei de uma avó – a disciplina de história tornou-se a minha favorita. Com o professor José Cristo, eu conseguia 18 e 19 valores no 11.º ano de escolaridade. Os 20 valores, claro, eram para o professor, não para o aluno (ou, talvez, para o Espírito Santo?). A perfeição é divina, a excelência, humana – algo que a vida me ensinou. Mas que, infelizmente (na minha opinião, tendenciosa, claro), poucos praticam.

De universidade em universidade – Autónoma de Lisboa e Faculdade de Letras de Lisboa, na licenciatura; Letras de Coimbra e Nova, no mestrado e doutoramento – sempre com a casa às costas, tipo caracol com os corninhos ao Sol, fiz o meu percurso de aprendizagem formal. Em contracorrente e contraciclo com o país e com o meio universitário, muito endogâmico (a nível profissional e, já agora, social e familiar).

Qual Jack London de Janas (Sintra), fiz um pouco de tudo, na vida. Comecei a trabalhar apanhando lixo do chão do armazém da editora do meu pai; fui assistente editorial na extintas e míticas PEA (Publicações Europa-América), em Mem Martins; esgotei-me durante dois anos a atender reclamações em aberto num call center da TMN, na Almirante Reis (em Lisboa); fui formador das Novas Oportunidades num centro do IEFP (em Alcoitão); dei explicações de História (com pouco sucesso, mas gastando muitas meias solas) e trabalhei como ajudante de lar durante três anos.

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Ah, claro – quase que me esquecia. Cúmulo dos cúmulos da precariedade, fui bolseiro de investigação para doutoramento e pós-doutoramento da FCT. Parafraseando Eric Maria Remarque, nada de novo na frente ocidental: veja-se, como exemplo ilustrativo, o artigo do Público de 16 de Julho.

Sempre fui observando, muito de longe, o percurso público de José Mattoso, primeiro na Torre do Tombo, depois em Timor-Leste, enquanto arquivista (li, com muito proveito, A Dignidade: Konis Santana e a resistência timorense). Fica evidente, do que a imprensa tem publicado nos últimos dias, a propósito da sua vida e legado, que cruzava áreas muito diversas, saberes díspares, como a filosofia, a história e os estudos religiosos – tal como o fizeram e fazem Moisés Espírito Santo e Armando Malheiro da Silva. Conseguindo unir o catolicismo progressista, de carácter social, com os ideais do Bloco de Esquerda (ao qual adere em 1999).

Parece-me claro que, com a morte de José Mattoso, a cultura e a historiografia, em Portugal, ficam pobres, muito pobres. Muitos dos seus discípulos testemunham-no. Nos elogios (e críticas, como a propósito da adesão à campanha do Livre, em 2015), fica provado que Mattoso, pela presença e ausência, deixa um vazio enorme. Colossal. O seu afastamento da realidade portuguesa, a partir de 2008, prova que o potencial científico e cívico de José Mattoso não foi levado às últimas consequências. O seu autoafastamento foi, com certeza, muito útil para uma governação política e cultural que sempre (ou quase sempre) se dá mal com estrangeirados, vivessem dentro ou fora de portas – veja-se o visconde de Santarém em Paris e Alexandre Herculano em Vale de Lobos. Como se repete ad nauseam, já no tempo dos Lusitanos, os civilizados Romanos diriam que somos um povo que não se governa, nem se deixa governar… Resta contextualizar esta aparente e tautológica explicação para a apregoada decadência nacional – o que não é pouco.

Mas o que de facto permanece, enquanto exemplo moral, de José Mattoso? Porventura, o que a esse propósito proferiu Rui Ramos: “Nunca foi um cacique universitário, nunca foi um académico de capelinhas”.

Porém, em aparente paradoxo, o que mais subsiste, na actualidade universitária portuguesa, são precisamente as capelinhas, os capelos e as sebentas; bem como as histórias contemporâneas de Portugal envolvidas em velhas roupagens e na mesma obstinação em repetir verdades históricas apriorísticas, ad nauseam.

Não nos iludamos: a historiografia que em Portugal se divulga, em 2023, não anda muito longe, a nível metodológico e informacional, do que se fazia em 1994, aquando da publicação da celebrada História de Portugal de José Mattoso, sobretudo no volume V, o referente ao século XIX.

Como diria Manuel João Vieira (ex-candidato presidencial), andamos há 30 anos a pedalar na maionese.

A ausência de uma carreira científica, prometida, mas nunca concretizada, durante décadas, significa que a carreira de ensino universitário assimila os investigadores de doutoramento e pós-doutoramento e anula as características mais nobres e singulares do investigador: a criatividade e liberdade de pensamento.

No caso da história, parasitada pela sociologia, essa situação é evidente – sobretudo no que diz respeito ao estudo da história contemporânea de Portugal (de 1820 em diante).

Nessa área específica, verifica-se a existência de uma espécie de vórtex milenário, em visão dantesca de fim do mundo da diversidade de perspectivas científicas. Pelo menos, no que diz respeito à história de Portugal de 1820 a 1834 (a que estudo há perto de 30 anos).

O mal, pestífero, é geral. A sociedade portuguesa do século XXI vê na ciência a nova religião salvífica e, na tecnologia, o modus operandi libertador, regenerador, mesmo. Daí que a FCT (precisamente, a Fundação para a Ciência e Tecnologia), alicerçada num MCTES inoperante (Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, no jargão tecnocrata e corporativo), valorize, sempre, as ciências duras, face às ciências moles, as sociais e humanas (veja-se, a esse propósito…).

E, claro, no que resta das ciências moles, os despojos do dia são divididos, sobretudo, pelos bastiões da esquerda caviar da capital, o ISCTE e a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.

Infelizmente, nunca saberemos qual a opinião de José Mattoso sobre este estado de coisas, ele que era medievalista.

Porém, no caso dos estudos de história contemporânea de Portugal, tal diktat é óbvio, pelo menos para mim, que me apaixonei por esse período cronológico em 1993/94, nas aulas de Sérgio Campos Matos (professor da Faculdade de Letras de Lisboa).

Quando eu era pequeno, o meu pai ensinou-me a ser equidistante – no imaginário popular, a torcer o pepino (isto é, a fazer crescer o fruto, desbastando a rama). Como? Relatando, num tom meio humorístico, meio sério, que o “Fascista do vizinho fez isto…” e “O Comuna do vizinho disse aquilo…”. Eram os finais dos anos 70, início dos 80. Sá Carneiro ainda era vivo. Nesses anos de formação, aprendi a procurar a verdade no confronto das versões opostas. E a nunca me contentar com as percepções iniciais, na vida do dia à dia e na do espírito.

Quase cinquenta anos depois, o país profundo continua essencialmente igual – separado em duas metades, partido entre visões opostas, dicotómicas, diálecticas, inultrapassáveis. As ideologias continuam a marcar a vida nacional – incluindo a científica, académica e universitária. As divisões são tão marcadas, que na Universidade de Lisboa, por exemplo, várias escolas, com um medo irracional de acordar do sono profundo da ignorância, preferem não estabelecer estratégias duradouras umas com as outras, nas respectivas áreas científicas afins, em projectos colaborativos. Estão igualmente de costas voltadas quem é da carreira de ensino e da carreira de investigação (a qual, aliás, é não-existente): os professores impõe métodos e visões ultrapassados, escolhem quem não é especialista, apenas porque… podem. E como é sabido, quem pode, manda. Quem perde com isso é a ciência histórica, sem inovação, sem renovação, parada no tempo, quase igual ao que existia em 1994, na altura de José Mattoso director da História de Portugal do Círculo de Leitores. As honrosas excepções não são dignas de menção, por não fazerem parte daquela parte do folclore mediático, da famigerada bolha mediática ou espuma dos dias. Do jet-set da capital, cor-de-rosa, cor de salmão… Ou de esturjão.

Enfim, mudam-se os tempos, mas as vontades mantêm-se, tal como no tempo de António Mattoso. Como diriam os nossos irmãos brasileiros: fazer o quê? O país envelhece, descaracteriza-se. As gerações passam. Os arquivos de história contemporânea relativos aos afinais finais do Antigo Regime acumulam pó, intocados. E todos os que podem, dormem, satisfeitos, numa aparente paz historiográfica… É o sono dos justos. O João Pestana já passou pelo Portugal historiográfico lisboeta dedicado aos anos de 1792 a 1851. Para José Mattoso, chegou a hora da paz eterna, que bem a mereceu.

De resto, quando se reformar, o último professor universitário sobrevivente encerrará a porta do seu gabinete, na hora da saída, tentando não levantar muita poeira.

E assim vamos, rindo e cantando… Como no tempo da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, a celebrada FNAT.