No último artigo, escrevi que em 1979 os adversários de Sá Carneiro dentro do PSD o acusaram de dar a mão à extrema-direita, entendendo eles por tal o CDS de Freitas do Amaral. Alguns dos assinantes do manifesto dos 54, em coerência com a confusão desse texto, fingiram que eu tinha dito que Freitas do Amaral era igual a Ventura. Precisaram de mais essa invenção para escamotearem o facto de toda a direita em Portugal ter sido, desde 1974, tratada como “fascista”. Houve quem, porém, argumentasse que isso não tinha importância, porque agora é que sim, agora é que o fascismo teria chegado: nunca teria havido em Portugal um partido que tivesse dito e feito o que o Chega diz e faz, e era isso que justificava a reação deles, também inédita nesta democracia. É assim? Não é.

Podemos começar, a propósito, pela comparação que a revista Sábado fez, o ano passado, entre o Chega de André Ventura e o CDS de Paulo Portas. A Sábado concluiu que Ventura e o Portas de há cerca de vinte anos tinham “as mesmas bandeiras”: a mesma desconfiança do Rendimento Social de Inserção (então Rendimento Mínimo Garantido), as mesmas críticas a comportamentos da minoria cigana, as mesmas reservas à imigração ilegal, a mesma afeição à polícia, etc. (repito, para os assinantes do manifesto não se enganarem outra vez: não sou eu que o digo, mas a Sábado).

Dir-me-ão: sim, mas certamente que, tratando-se de Portas e do CDS, toda a gente, em 2002, terá dado a essas “bandeiras” um sentido diferente? Parece que não. Também Paulo Portas foi então identificado como o delegado em Portugal de uma onda internacional de extrema-direita, e devidamente comparado a Le Pen — neste caso ao pai. E não apenas pela esquerda, mas também por aqueles que nesses anos reivindicavam, tal como os signatários do manifesto dos 54, a representação comercial em exclusivo no nosso país da marca “direita democrática”. Na  edição do Expresso de 5 de Outubro de 2002, em artigo de um dos seus principais jornalistas, não havia dúvidas: “No CDS domina o populismo radical do tipo Haider de Paulo Portas (e seus sucedâneos)”. No estrangeiro, era consensual arrumar Portas entre Jean-Marie Le Pen, Pym Fortuyn, Gianfranco Fini e Pat Buchanan. Eis, por exemplo, o que o professor universitário Guillerme Alonso Meneses, na revista Migraciones Internacionales (arquivada na Scielo), dizia de Paulo Portas e dos seus supostos correligionários internacionais: encarnavam, segundo ele, “a ascensão da extrema direita e do integrismo nacionalista por via das urnas”. Pior: “representam uma parte visível desse icebergue que tem por debaixo um discurso anti-imigrante e xenófobo que não tem o menor problema em dar voz a preconceitos contra imigrantes”. E terminava em tom soturno: “Sem dúvida, esta etapa onde os actores sociais não dissimulam o racismo e o nacionalismo exclusivista das suas ideologias políticas é preocupante”. Na universidade em Portugal, era a mesma coisa: em 2007, no ISCTE, a cientista política Catarina A. Costa, numa dissertação orientada por António Costa Pinto, catalogava o CDS de Portas como um partido da “nova extrema-direita pós-industrial europeia”. É verdade que André Ventura tirou, em 2020, uma foto com Marine Le Pen, e que Paulo Portas, em 2002, não tirou nenhuma foto com Jean-Marie. Mas para quem quisesse fazer amálgamas, não faltavam outros indícios. Por exemplo, uns anos antes, em 1995, tinha sido notada a semelhança entre a crítica à integração europeia do CDS de Paulo Portas e de Manuel Monteiro e a crítica (nacionalista e proteccionista) de Pat Buchanan ao NAFTA (ver o debate de 10 de Novembro de 1995 no Diário da Assembleia da República, Série 1, VII Legislatura, Sessão Legislativa 1, no. 4, p. 96). Hoje, Buchanan é lembrado como um precursor de Donald Trump. Mas em 1999, era o próprio Trump, na sua fase de esquerda, quem lhe chamava “um fã de Hitler”. Por isso, ainda em 2003, já com o CDS no governo ao lado do PSD, tanto os partidos da esquerda como uma parte do próprio PSD continuavam a exigir um “cordão sanitário” ao partido de Paulo Portas. Não, não foi só no PREC ou na AD de 1980 que o CDS foi tratado assim.

Não, o CDS não era o Chega de 2002. Era um dos partido fundadores do regime, com quase trinta anos. Passara por vários governos. Tinha quadros e uma logística que o Chega, fundado há pouco mais de um ano, não tem. Entre 1995 e 2005, manteve, sob as lideranças de Manuel Monteiro e de Paulo Portas, entre 14 e 15 deputados na Assembleia da República. Em 1998, Portas apresentou um projecto de lei de Segurança Social. Parecia pronto para ir para o governo. Por origens familiares, Portas estava integrado na classe dirigente. Nada disso, porém, impediu que muita gente tivesse olhado para Portas e o CDS como agora olham para Ventura e o Chega. E a esse olhar severo, também não faltou o contexto internacional de democracias supostamente ameaçadas por um gigantesco maremoto de extrema-direita: 2000 foi o ano em que Haider entrou no governo da Áustria, o que a sujeitou a um boicote dos outros Estados europeus; 2002 foi o ano em que Le Pen chegou à segunda volta das eleições presidenciais em França; e, claro, com George Bush, os EUA eram então o “IV Reich”, determinado em conquistar o mundo, a começar pelo Iraque. Portanto, se Portas, segundo a Sábado, empunhou as “bandeiras” que agora são de Ventura, foi para ser tratado da mesma maneira, e num contexto semelhante. Posto isso, por que se atreveu então Portas a segurar nas “bandeiras” de Ventura, se quisermos continuar a usar os termos da Sábado?

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Há mais de trinta anos que existe em Portugal um espaço político formado por aqueles que o sistema deixou de fora, por exemplo aqueles que perderam ou não ganharam com a integração europeia. Começaram por ser os reformados pobres e os sobreviventes da velha economia, sobretudo na província. Nos anos 1990, quando as classes médias foram confortavelmente cavaquistas e depois guterristas, esses “descamisados”, a quem os políticos instalados não falavam, eram a audiência mais disponível para políticos no começo da carreira, como Paulo Portas ou Manuel Monteiro. A esquerda tentou também explorar esse eleitorado, atiçando-o contra os ricos e prometendo-lhe subsídios. Portas e Monteiro falaram-lhes do que mais ninguém lhes falava, a começar pela segurança – o que a esquerda, previsivelmente, aproveitou para os promover a émulos nacionais de Jean-Marie Le Pen. Hoje, é Ventura que comunica com esse eleitorado de excluídos, a que se agregaram muitos trabalhadores suburbanos. Não está exactamente no mesmo lugar de Portas em 2002, porque não tem um partido como o CDS. Em contrapartida, tem a vantagem de a liquidação do “arco da governação” pelo PS ter feito valer todos os votos. Não precisa de 14 ou 15 deputados para ser o centro de todas as discussões.

A quem examina assim estes assuntos, costuma a esquerda acusar de “normalização”. Mas o que dizer quando as coisas são mesmo “normais”, isto é, já vistas várias vezes? A história de Ventura nada tem de novo. De resto, Ventura não é um estranho ao “sistema”. Foi, até há dois anos, militante do PSD e seu candidato autárquico. Os caminhos que segue já foram muito batidos neste regime. O que explica o Chega não é a adesão popular a um movimento de milícias armadas com uma doutrina coerente de nacionalismo autoritário, como nos anos 1920 e 1930. Vivemos num país em divergência com a Europa, que voltou a ser uma sociedade de ricos (os ligados ao poder) e de pobres (os outros). É fatal que surjam políticos à direita ou à esquerda a tentar arranjar votos falando para os descamisados. Isto só mudará, não quando se isolarem esses políticos, mas quando esses descamisados voltarem a ter oportunidades numa economia aberta e dinâmica. Portanto, se há um problema, não é o Portas de 2002 nem o Ventura de 2020, mas o poder instalado que há vinte e cinco anos recusa, para manter o seu domínio sobre a sociedade, a liberalização que todos os organismos internacionais recomendam para favorecer o crescimento económico. É esse poder que é preciso remover para diminuir os descamisados e as tentações de André Ventura. E se tiver de ser, como nos Açores, com alguns votos do Chega, pensem que a história, como ensinou Hegel, é por vezes irónica.

Até lá, porém, será preciso muita paciência, porque a esquerda nunca deixará de aproveitar o Chega, tal como fez ao CDS de Portas em 2002, para nos convencer de que estamos num filme sobre a Alemanha de 1933. É essa a maneira de o poder socialista fazer de conta que é uma barricada heróica, na qual vale a pena cair em combate contra o novo Hitler. E sempre que, à direita, lhe respondem com o PCP e o BE, ainda melhor: eis o debate político em Portugal, no meio de uma das maiores crises do nosso tempo, focado nos “extremos” — e o PS, como de costume, livre de prestar contas. O ministro das finanças, quando o Banco de Portugal explica que este Estado endividado já não pode apoiar muito mais a economia, ou a ministra da Saúde, diante da expansão da epidemia, só podem agradecer cada novo artigo que tente desviar a atenção do país para a comparação das malfeitorias de Hitler com as de Estaline. “Discutem-se ideias e princípios”, ouve-se dizer à volta da mesa, não sei se com convicção, mas certamente com excelentes digestões. Que leve esta farsa a sério quem tiver a ganhar com isso.