O CDS é um dos grandes partidos da democracia portuguesa. Mas nunca teve vida fácil. Não é a primeira vez que tem cinco deputados. Já até teve menos. Na fundação do regime, não dispôs dos meios que foram decisivos para outros partidos, como lugares no governo ou ligações militares. Logo em 1976, Jorge Gaspar e Nuno Vitorino, na sua análise das eleições de Abril de 1975, diagnosticaram-lhe um problema: o CDS partilhava o eleitorado com o PSD, por vezes em sistema de vasos comunicantes. Isso obrigou frequentemente os seus líderes a ziguezaguear, e sujeitou-os a desaires como em 1987 e em 1991, quando os eleitores do CDS julgaram que o mais importante era garantir que Cavaco Silva iria continuar no governo.

Mas como no caso de Mark Twain, as notícias da morte do CDS foram sempre exageradas. Em 1987, teve 251 987 votos nas legislativas (4,44%). Mas nas europeias, que decorreram no mesmo dia e em que o governo de Cavaco Silva não estava em causa, conseguiu 868 718 votos (15,4%). Por isso, apesar de tantas gravatas pretas, não houve funeral. Da mesma maneira, talvez conviesse às actuais carpideiras reparar nas eleições dos Açores, em Outubro passado, onde, contra as previsões da medicina legal da política, o CDS recuperou em relação às desastrosas legislativas de 2019, e contribuiu para mudar o governo regional.

O facto é que, tirando a década de Cavaco Silva, nunca houve maiorias reformistas em Portugal sem o CDS. Por duas razões: porque o CDS reforçou essas maiorias ao expressar nelas a pluralidade da direita, e porque o CDS representou essa pluralidade de um modo que se podia somar. Durante muito tempo, aliás, foi essa a vantagem da direita sobre a esquerda: os seus partidos somavam, sem mais atritos do que os inerentes a qualquer coexistência. Ao contrário da esquerda, em que cada partido sentiu sempre ter como missão histórica ultrapassar e erradicar os outros: os comunistas, enquanto revolucionários, aos socialistas; os socialistas, enquanto democratas, aos comunistas; e os neo-comunistas, como mais recentes, a todos.

Qual é, então, o problema do CDS? O problema do CDS não é, ao contrário do que toda a gente repete, os novos partidos, a IL e o Chega, que em 2019 elegeram um deputado cada um, quando o CDS perdeu 13. Também não é o PSD, que não está propriamente em fase de expansão cavaquista. O problema do CDS foi criado por si próprio, durante a presidência de Assunção Cristas, por uma facção que, depois do acidental sucesso autárquico lisboeta de 2017, julgou que podia fazer do CDS um catch-all party – o que não é o mesmo que ser plural – pelo expediente manhoso de fingir ser tudo para todos, pintando passadeiras com arcos-íris em Arroios, votando com o sindicalismo comunista na Assembleia da República, e frequentando programas de TV da manhã e do fim da noite. O CDS desorientou-se, e desorientou os seus eleitores. A derrota foi grave e, pior, as consequências terão sido desastrosas para as finanças e a logística do partido.

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Este problema não passou, porque essa mesma facção, depois de derrotada em Congresso em Janeiro de 2020, está outra vez à porta, muito nervosa e apressada. Porque a direcção de Francisco Rodrigues dos Santos falhou? Não, porque a direcção de Francisco Rodrigues dos Santos teve resultados, e ameaça consolidar-se: chegou ao governo nos Açores, evitou o erro dramático de lançar mais um candidato presidencial, e começou a negociar coligações autárquicas com o PSD. Poder-se-ia exigir mais em apenas um ano, com o partido sem dinheiro e em tempo de pandemia? Como teria sido, se a direcção anterior tivesse continuado? Podemos adivinhar, pelas declarações e comentários dos seus mentores: teria salvo o governo socialista nos Açores, a pretexto de que o Chega é demasiado à direita; e teria tido um candidato para competir pelo último lugar com Tino de Rans, a pretexto de que o Presidente da República não é suficientemente à direita. Teria o CDS melhores sondagens com este espectáculo de confusão e leviandade?

Para compreender esta facção, convém lembrar as suas origens políticas. Na sua maioria, trata-se de discípulos da direcção que tomou o CDS em 1992. O CDS representara até então uma síntese entre conservadorismo e liberalismo, isto é, entre conservadores como Adriano Moreira, conscientes da importância do mercado e do internacionalismo, e liberais como Lucas Pires, cientes da importância do Estado e da solidariedade nacional. A direcção de 1992 – chefiada por Manuel Monteiro e Paulo Portas — foi tentada a liquidar esse CDS e a fazer um novo partido, o PP: um partido populista, nacionalista, ruralista, anti-globalização, anti-europeu, anti-cavaquista, e, quando o RSI foi criado, anti-RSI. Em 1995, num país em ressaca da primeira crise da integração europeia, passou de 5 a 15 deputados. Logo depois, porém, a sua direcção rompeu-se, ficou reduzida a Portas, e mudou novamente de rumo. Por volta de 2000, já  tinha recuperado a marca CDS, fizera-se europeísta, e reaproximara-se do PSD. Continuou ainda a falar de imigração e de RSI, o que lhe valeu, durante mais uns anos, a acusação de “racismo”, como agora acontece a André Ventura. Em 2002 e em 2011, passou pelos governos do ajustamento. Fez-se então representante de uma “direita social”, “democrata-cristã”, determinada a contrariar o “liberalismo” do PSD de Pedro Passos Coelho, o que causou não poucos equívocos e incidentes.

Essa direcção – que foi a mais longa de um partido à direita na história da democracia – conseguiu muitas coisas, mas deu uma educação terrível a alguns dos seus discípulos: convenceu-os de que um partido é uma espécie de aposta numa mesa de jogo, que agora se põe neste número, e logo a seguir noutro. Daí, a desorientação de 2016-2019: os epígonos julgaram que estava ao seu alcance, sozinhos, imitar os mestres e dar mais um passe de mágica. Foi o desastre. Mas não aprenderam nada. Falhada essa aposta, pensam agora noutra. Em 1992, os seus mestres inventaram um partido populista. Em 2021, os epígonos terão julgado Ventura um concorrente demasiado forte. A IL pareceu-lhes talvez um rival mais vulnerável a aquisições e fusões. Ei-los, assim, a experimentar o pronto-a-vestir de um liberalismo que não é de esquerda nem de direita, concebido como um conjunto de soluções técnicas, como as que o FMI aplica aos países em dificuldades, mas recoberto de uma boa camada de tinta politicamente correcta, a fim de beneficiar de boa imprensa à esquerda.

Alguns destes epígonos já terão sido tudo e o seu contrário: populistas em 2000, democratas cristãos em 2010, liberais agora. Vivem de tentar adivinhar o que está a dar, prontos para ser o que for preciso, convencidos de que o que conta é a “imagem”. É óbvio que se persuadiram de que os princípios não têm importância nenhuma em política. Acontece que os princípios não são apenas uma questão de convicção: são também o compromisso de um político com os seus eleitores, e aquilo que justifica a confiança destes. Confiança é o que os epígonos, com as suas piruetas e golpadas, não suscitam. É esse o problema deles. E se regressarem à direcção do CDS, voltará a ser o problema do CDS.

No entanto, há quem, à direita, admitindo tudo isto, esteja indiferente. Pouco se lhes dá que o CDS sobreviva ou não. A sua eventual substituição pela IL e pelo Chega não teria mal nenhum. Onde havia um, haverá dois, e quando a ocasião chegar ou aparecer alguém que toque a reunir, todos se juntarão para substituir o poder socialista. Será assim? Ninguém pode dizer que será assim. Porque nenhum líder, por mais carismático, nem nenhuma ocasião, por mais propícia, garantem que seja possível ultrapassar as incompatibilidades que os novos partidos, por uma questão de sobrevivência, andam a criar entre si e com os outros. O maior erro está na suposição, falsa, de que o CDS é simplesmente a soma da IL e do Chega. Mas o CDS não é a soma da IL e do Chega, precisamente porque a IL e o Chega não somam. A IL já deu sinais de que acha um governo socialista preferível a aceitar os seus rivais como parte de qualquer solução; o Chega, a mesma coisa. Até podem achar-se teoricamente adversários do socialismo, mas o inimigo principal para eles está do seu lado, porque vivem para ultrapassar e não para conviver com os partidos à direita. Para a IL, todos os outros partidos são “socialistas”; para o Chega, todos são do “sistema”. Esta indiscriminação é, obviamente, o maior serviço que alguém pode fazer aos verdadeiros socialistas e ao verdadeiro sistema. E é esta indisponibilidade para distinguir que os faz aliados potenciais do sistema socialista. Olhem para Espanha. Em Espanha, o Ciudadanos acabou a sustentar o governo PSOE-Podemos e, quando falhou nessa função, foi substituído pelo VOX – a “extrema direita” a “salvar” o governo mais esquerdista de Espanha. Ninguém pode assegurar que IL e Chega venham a fazer parte de uma alternância política em Portugal. Nem um CDS dominado pela facção que quase o destruiu entre 2016 e 2019.

O CDS de Francisco Rodrigues dos Santos não suscita essa dúvida. O seu discurso, na terça-feira, é o de um líder que sabe o que está em causa e o que é necessário fazer. Nos Açores, Francisco Rodrigues dos Santos conseguiu, em várias semanas de dura campanha, recuperar votos e a capacidade de ajudar a criar, com o PSD, uma alternativa ao poder socialista. Se os votos do CDS, por hipótese, tivessem sido divididos entre IL e Chega, teriam sido talvez anulados pelas suas incompatibilidades. Um CDS responsável e previsível tem, por isso, um lugar importante, e o seu desaparecimento seria gravíssimo para uma alternativa a um poder socialista que é incapaz de governar e está a empobrecer o país.

Por tudo isto, o que se passar no CDS este fim-de-semana deveria importar a mais gente do que aos militantes e simpatizantes do partido. Deveria importar aos conservadores liberais deste país, isto é, aqueles que sabem que a liberdade individual é a base das mais prósperas comunidades, mas também que comunidades fortes são a melhor garantia da liberdade individual. Esses não se entusiasmam nem com liberalismos de folha Excel, nem com nacionalismos de tablóide, mas perceberão certamente a conveniência de, à direita, predominarem partidos capazes de se unir para enfrentarem o Partido Socialista e iniciarem um processo de reforma do Estado e de reforço da sociedade civil. E deveria importar a todos aqueles que querem um melhor governo e um país mais livre, mais seguro, e mais desenvolvido. Esta foi a semana em que The Economist deixou de considerar Portugal “totalmente uma democracia” (e não apenas por causa do confinamento), em que o desvio de vacinas revelou como as instituições públicas foram apropriadas pelos militantes socialistas, e em que vários governos europeus, perante o fracasso do Estado em Portugal, resolveram acorrer ao pior foco de infecções do mundo. Não, não está apenas em causa um partido ou a direcção de um partido. Aqueles que prezam a democracia e a liberdade, e também a decência, só podem desejar: boa sorte, Francisco Rodrigues dos Santos.