Faz hoje três anos que desapareceu Américo Sebastião, empresário português, cidadão europeu também, raptado em Nhamapaza, distrito de Maringué, província de Sofala, Moçambique. Hoje, não sabemos mais do que foi sabido no primeiro dia, 29 de Julho de 2016: “O rapto aconteceu por volta das 6:00 horas, no posto de combustível da localidade, várias vezes utilizado por Américo Sebastião. O posto de combustível é propriedade de Artur Vasco Jambo. Segundo testemunhas oculares, os raptores estavam fardados [com uniformes da UIR, Unidade de Intervenção Rápida] e transportaram Américo Sebastião numa carrinha de marca Mahindra, de cor cinzenta, tipo de veículo que é frequentemente utilizado pelas forças de segurança moçambicanas.”
Segundo rumores e conversas, esta é a explicação para nunca se ter sabido mais nada: o rapto ter sido executado por homens fardados com uniformes da UIR, que se transportavam numa viatura do tipo das utilizadas pelas forças de segurança moçambicanas.
A família, além de enfrentar com rara coragem a sua dor e incerteza, tem corrido Ceca e Meca, consecutivamente, tanto em Moçambique como em Portugal, para que a verdade se revele e conseguir ter de volta Américo Sebastião. Por indícios e referências que lhe chegam, a família tem a certeza de Américo Sebastião estar vivo, retido num cativeiro. Das portas a que bateu, algumas não se abriram – ou só muito tardiamente. E das que se abriram, nenhuma resultou em algo palpável em termos de verdade e libertação.
Por isso, três anos passados, é o tempo de pensarmos como a questão Américo Sebastião nos interpela. A interpelação é esta: de que massa somos feitos? É a interpelação que fica sempre aos Estados, aos órgãos de poder e seus titulares, à comunidade internacional, à sociedade em geral, a cada um de nós como compatriotas. De que massa somos feitos?
Revendo três anos, creio que, com excepção da comunicação social, a interpelação deve fazer-se a todos, desde a comum cidadania (o que se passa com Américo Sebastião e sua família pode, um dia, acontecer com qualquer um de nós) até a instâncias internacionais, com destaque para a União Europeia. De que massa somos feitos? De que vale ser cidadão europeu?
No princípio do mês, o Presidente da República de Moçambique, Filipe Nyusi, visitou a Portugal. Não foi uma visita para esquecer; é uma visita para lembrar. Sobre Américo Sebastião, declarou que “não é um assunto de Estado”. Como não é um assunto de Estado? Como não é assunto de Estado o rapto e sumiço de um cidadão estrangeiro? Claro que é assunto de Estado! Como não é assunto de Estado a recusa sistemática pelo Estado moçambicano da cooperação policial e judiciária várias vezes oferecida por Portugal face à inoperância das investigações em Moçambique? Como não é um assunto de Estado que a Procuradora-Geral da República moçambicana tenha mentido a este respeito e sobre a PGR portuguesa aos deputados da Assembleia da República de Moçambique? Claro que é assunto de Estado!
O Presidente Nyusi, em entrevista à RTP, no fim da visita, declarou, a respeito da cooperação policial e judiciária por Portugal, que Moçambique é “um país soberano”, assim parecendo justificar a não aceitação. É ao contrário: é por Moçambique ser um país soberano que se justifica a necessidade de cooperação e o imperativo da aceitação recíproca – se Moçambique não fosse soberano, qualquer um entrava por ali dentro e investigava o que quisesse. Como reagiria Moçambique, se desaparecesse em Portugal um moçambicano, com uma investigação sem quaisquer progressos ao longo de três anos, e o Estado português rejeitasse secamente as ofertas de cooperação policial e judiciária que Moçambique, naturalmente inquieto, apresentasse? Aliás, em 2013, no caso do rapto de outro empresário português, Moçambique trabalhou em colaboração com a nossa Polícia Judiciária, colaboração que se concluiu com pleno êxito em cerca de um mês. Se, no quadro CPLP, não existem ainda instrumentos suficientes para assegurar com prontidão uma aberta cooperação bilateral que se impõe pela natureza das coisas (crimes num país vitimando cidadãos do outro), está-se à espera de quê? De novo um assunto de Estado. Para que serve a soberania dos Estados-membros se não serve sequer para proteger os seus cidadãos?
O caso atingiu um ponto melindroso. Exclusivamente porque o Estado moçambicano o conduziu a este ponto. A agir assim, é impossível afastar a suspeita de querer esconder qualquer coisa. O Presidente Nyusi, naquela entrevista à RTP, confabulou sobre as circunstâncias do rapto: que era uma zona muito perigosa onde não passa ninguém, que só Américo Sebastião lá conseguia ir, que podem ter sido animais. O Presidente da República de Moçambique não pode afirmar estas coisas. Américo Sebastião foi raptado numa bomba de combustível. Ora, ninguém tem uma bomba de combustível numa zona onde não passa ninguém – estaria falida. Os postos de abastecimento existem em locais junto a estradas onde passam muitas viaturas. Sim, era uma zona problemática em termos de segurança, por causa do conflito Frelimo/Renamo. Mas, naquela bomba, o que foi visto, naquela manhã, não foram nem leões, nem hienas, mas homens fardados com uniformes da UIR, transportando-se numa carrinha igual às das forças de segurança moçambicanas, onde levaram Américo Sebastião. Estas forças são as que é suposto protegerem os cidadãos. Não há dúvida: é mesmo um assunto de Estado.
É comum considerar-se que, pelo Estado português, foi feito o máximo possível. Não é verdade. Muita diligência, muito pedido foram feitos, sem dúvida. Mas estes três anos de absoluto vazio mostram, afinal, que nada de suficiente foi realmente feito. Estamos na mesma.
A experiência leva-me a crer que Portugal tem de tirar umas lições com Angola em matéria de “irritantes”. Num caso de alegada corrupção, envolvendo um seu dignatário, Angola declarou o seu mal-estar, sinalizou-o várias vezes, encontrou intérpretes para explicarem claramente o que não queria afirmar, mas queria que fosse bem escutado e entendido, não hesitou sobre quaisquer outras consequências, focou-se com firmeza no que pretendia – e Portugal até acabou por encontrar um desembargador capaz de produzir a decisão a remeter para Angola o que Angola queria. Nós, neste caso de comprovado rapto e desaparecimento, não somos capazes de colocar o discurso e o gesto naquele ponto que leve Moçambique a aceitar o que é devido: podermos participar na investigação com os nossos magistrados e a nossa polícia.
Na Assembleia da República, onde temos os representantes dos cidadãos, muito pouco foi feito. Cada semana em que devia ser lembrado tem sido cada semana em que foi esquecido. Houve o debate em plenário em 2018 de uma petição mobilizada pela família e duas perguntas parlamentares ao governo. Sem sequência. Nada se resolveu, tudo adormeceu. A acção parlamentar não tem estado ao nível do exigível num caso desta gravidade, que envolve liberdade e a vida de um compatriota.
A responsabilidade é de todos e de todas as bancadas. Mas chama mais a dedicação e o trabalho dos deputados de Fora da Europa, dos de Leiria (a família Sebastião é do Bombarral) e dos do Grupo Parlamentar de Amizade Portugal/Moçambique (mantendo diálogo permanente com a Assembleia moçambicana). Tem de ser um trabalho incansável, resiliente, indomável senão pela verdade. Para subir o patamar com Moçambique como é indispensável – aprendamos com Angola em matéria de “diplomacia de irritantes” – esse chamamento tem que vir do Parlamento, dos deputados, porque vem da cidadania, porque vem do povo. Afinal de contas, de que massa somos feitos?