Há algumas semanas, os olhares do País focaram-se no INEM: pessoas morriam, alegadamente por atrasos no socorro.
No calor da discussão, que procurava mais encontrar culpados do que soluções, ficou-se a saber que o INEM tinha uma falta gritante de técnicos de emergência pré-hospitalar (TEPH), por incapacidade de os atrair e reter desde há alguns anos; que o saldo orçamental do INEM, proveniente dos seguros, era, desde 2015, sistematicamente, “engolido” pelo Ministério da Saúde (num total acumulado que ultrapassa os 130 milhões de euros); que o sistema de triagem estaria obsoleto; que as viaturas estão muito degradadas; que os Bombeiros (e, em menor escala) a Cruz Vermelha Portuguesa, asseguram mais de 90% do nível básico do socorro pré-hospitalar; que houve cerca de 19000 doentes em 2023 que precisariam de ser socorridos por uma viatura de nível diferenciado (ambulância de suporte imediato de vida- SIV, com enfermeiro e TEPH; ou viatura médica de emergência e reanimação- VMER, com médico e enfermeiro) e não a tiveram; que há dificuldades em formar os TEPH no INEM; que a formação atual dos bombeiros é insuficiente; que o número de dirigentes do Conselho Diretivo (2) é insustentável desde 2012; etc.
Pelo meio, sugeriram-se algumas medidas “avulso”, algumas até contrárias entre si. No ar, a pairar, uma refundação…
Julgo que a primeira grande reflexão que se impõe é se o INEM pretenderá ser prestador de cuidados de emergência médica ou mero pagador e regulador da atividade. Dessa decisão decorrerão a maioria das outras.
Se quiser ser prestador de cuidados deverá começar por revigorar o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), órgão coordenador do sistema, com melhores ferramentas tecnológicas (geolocalização, inteligência artificial, interoperabilidade com viaturas de emergência e hospitais, etc.); com um sistema de triagem que se adeque às necessidades atuais (e, idealmente, futuras), nomeadamente com mais do que as três possibilidades existentes de resposta (emergente, necessita de meios diferenciados; urgente, necessita de meios menos diferenciados; não urgente, transferida para a linha SNS 24 para orientação/aconselhamento); e com uma revisão dos recursos humanos que lá desempenham funções, em número e, eventualmente, em categoria profissional.
Depois de ter um CODU fortalecido, precisará de melhorar a sua rede de meios de emergência pré-hospitalar. Deverá ter como objetivo assegurar 100% dos cuidados pré-hospitalares diferenciados e uma quota crescente, mas desde logo significativa, dos cuidados de emergência menos diferenciados. Uma vez que a rede de VMER estará “esticada” ao seu limite máximo (por exiguidade de médicos no sistema), parece natural que o crescimento se faça pelo acréscimo de unidades de ambulâncias SIV e ambulâncias de emergência (com TEPH).
Deste crescimento, decorrerá outra decisão: a resolução da necessidade de rever a carreira dos TEPH, para os atrair e reter, e de rever a sua formação, para que não se mantenha como um “estrangulamento” do sistema. Esse “estrangulamento” deve-se à falta de capacidade de ter médicos com experiência em urgência/emergência a ministrar formação teórico-prática em sala e, principalmente, a supervisionar estágios em ambulâncias, com um rácio insustentável de um médico para dois formandos/TEPH. Esse “estrangulamento” não se resolve “empurrando” o problema para as Faculdades de Medicina. Onde haverá a mesma falta destes recursos. Resolve-se estabelecendo parcerias com as entidades que detém esses recursos: os serviços de urgência das Unidades Locais de Saúde.
É, também, importante, definir quais as zonas/regiões onde o INEM não irá assegurar a prestação de cuidados de emergência pré-hospitalar a 100%, definir como será, nesses casos, constituída a rede complementar (e de redundância, nos restantes), e como é que esse serviço fica assegurado, com um nível de qualidade semelhante.
Finalmente, se este for o caminho (que defendo), será necessário assegurar o financiamento para o investimento inicial em viaturas e equipamentos e o reforço orçamental permanente para pagamento de mais encargos com pessoal e material de consumo clinico, para além de ser necessário dotar o instituto da agilidade necessária à realização de contratos de trabalho e de aquisições de material e equipamento que hoje, sujeito às regras da administração pública, não tem.
Se o caminho for de se transformar num mero pagador/regulador, e contratar todos os serviços a terceiros, convirá apenas garantir que o mercado funcione, que há concursos abertos transparentes para as diversas atividades (coordenação– CODU; e prestação de cuidados de emergência pré-hospitalar, nos seus diferentes níveis de diferenciação); garantir que tem capacidade para regular, auditar e fiscalizar tudo isto e que terá orçamento para pagar o preço que o mercado estabelecer.
Neste modelo, não há necessidade de rever o sistema de triagem utilizado, a carreira dos TEPH ou a sua formação, o desgaste das viaturas nem a agilidade contratual. Bastará pagar e tentar exigir um determinado serviço em troca.
Esta é a reflexão que se impõe. Esta é a verdadeira escolha a que estamos obrigados. Manter um “nim” (nem não, nem sim) não é aceitável. Não decidir é adiar. E adiar pode, eventualmente, ser matar (ou deixar morrer).