Em 2013, não percebi por que motivo Nuno Crato reintroduziu os exames do quarto ano. Em 2015, não percebi por que motivo o parlamento acabou com os exames de quarto ano. Também não percebi a ideia de introduzir provas de aferição no segundo ano. Em nenhum dos casos houve qualquer justificação racional. Apesar de achar tudo isto uma tontice, fiquei contente que na escola da minha filha se fizessem as provas de aferição. Aos 7 anos de idade, seria a primeira prova nacional que a minha filha iria fazer. Não lhe pus pressão nenhuma, bem pelo contrário, mas tinha a secreta esperança de que ela conseguisse chegar aos 100%. Especialmente, na prova de matemática. Passaria a chamá-la campeã.

No dia da prova, eu estava no estrangeiro, pelo que foi nessa noite, via skype, que conversei com a miúda sobre a prova. Tinha sido canja e, de facto, estava convencida de que conseguiria os 100%. Mas depois conferi com ela algumas das suas respostas na prova. Errou na primeira que lhe perguntei. Depois errou na segunda. E, à terceira questão, voltou a errar: respondeu que 56+28 era igual a 64. Fiquei surpreendido com tamanha distracção. A rapariga ficou desgostosa e furiosa. Como podia ter errado uma coisa tão simples; se 50+20=70, como podia ela ter respondido com um valor inferior? Mais tarde, comentei com a minha mulher que aquela performance era absolutamente anormal e que alguma coisa se tinha de estar a passar. Conhecendo as suas capacidades como conheço, era impossível que tivesse errado aquelas perguntas. Não era ela.

Já em Braga, expliquei-lhe que tinha de estar bem mais concentrada nos testes e exames. Errar quando não se sabe é normal, mas errar quando se sabe é parvoíce. Comentei com o meu colega de gabinete que passei a ser um acérrimo defensor das provas de aferição. Isso porque a minha filha tinha cometido erros que, de certeza, não voltaria a cometer. Provas de aferição, que não contam para nota, são o ambiente certo para testar os miúdos e fazer as correcções necessárias. Continuava sem perceber como ela tinha errado aquelas perguntas, mas numa próxima oportunidade não erraria. A vida continuou, naturalmente, sem que ninguém se voltasse a preocupar com o assunto.

Até que no Domingo de há duas semanas e meia, depois de deitarmos as pequenas, a minha mulher se vira para mim e diz que um dos sintomas da diabetes é beber muita água. Ora, já há semanas que a mais velha andava a beber demasiada água e se levantava todas as noites para ir à casa de banho. Não ficaria descansada enquanto a pediatra não a visse. Eu nunca tinha ouvido falar em tais sintomas, mas uma pesquisa rápida confirmava que a minha mulher tinha razão.

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Não fiquei convencido. Como regra, vou pela explicação mais fácil e, com o calor que fazia, beber muita água não era grande sintoma. O outro sintoma muito comum era o de comer muito e perder peso. É verdade que a minha Ana Laura tinha começado a comer mais e não aumentava de peso, mas também não era nada do outro mundo. A cada sintoma que lia, e que correspondia, arranjava uma desculpa para o negar. Até que leio que a falta de capacidade de concentração, provocada pela glicemia elevada, é um dos sintomas. O coração caiu-me aos pés. A dúvida passou a certeza. Logo na manhã seguinte, levei-a à pediatra que confirmou o diagnóstico e nos mandou imediatamente para o hospital. Por lá ficámos o resto da semana. Os primeiros dias nas Urgências, onde, aliás, escrevi o artigo dessa semana, e depois internados na pediatria.

Como saberá toda a gente que passou por isto, no início parece um sonho, de que se vai acordando aos supetões, à medida que a realidade se impõe. O primeiro supetão foi perceber que ao contrário dos diabéticos que conheço, a minha filha terá de picar os dedos, várias vezes ao dia, a cada refeição, para medir a glicémia e calcular a quantidade de insulina que injectará. Depois entendi, a imensa maioria dos diabéticos que conheço são do tipo 2, ela é do tipo 1, ou tipo ruim, como lhe chamam alguns brasileiros. Ou seja, como quase todas as crianças, é insulinodependente.

Fui percebendo as batalhas que temos pela frente. Por exemplo, terei de esperar alguns anos para receber do Sistema Nacional de Saúde a bomba que facilitará as tomas de insulina, pelo que mais vale comprá-la eu. Já conheci crianças que tiveram de esperar 6 e 7 anos pela sua bomba. Também percebi que o facto de ter uma doente crónica na família em nada altera os limites com despesas de saúde no IRS; pelas minhas primeiras contas, o plafond do IRS para despesas com a saúde esgota-se com os consumíveis que gastarei em dois meses. E por aí fora. Na verdade, a minha filha tem sorte de viver numa família que, com alguns sacrifícios, lhe dará acesso à melhor tecnologia disponível, o que é importante para minimizar as sequelas de longo prazo da diabetes, como lesões oculares ou renais.

Mas não consigo não me revoltar com os milhares de crianças a quem não é dado todo o apoio de que carecem. Quando no futuro falar sobre os apoios dados, ou falta deles, a doentes crónicos em geral, ou a diabéticos em particular, os meus leitores já sabem. Falo com a autoridade de quem convive de perto com o assunto. Mas também falo como parte interessada. Fica assim feita a minha declaração de interesses para artigos futuros.

PS. Uma palavra é devida às médicas e enfermeiras que nos trataram no Hospital de Braga. São pessoas fantásticas e incrivelmente prestáveis. Por exemplo, deram-nos os seus telemóveis no dia em que nos conheceram. E, mais do que isso, passam uma imagem de competência e de profissionalismo que nos deixam a certeza de que não podíamos estar em melhores mãos.

PPS. Aos pais que, no futuro, passem por isto, um conselho: não escondam nada. Esta doença é tão comum que será inevitável que as crianças ouçam coisas que devem ser contadas por nós. Por exemplo, quando tivemos alta do Hospital, a minha filha quis ir à escola ver os colegas. À noite contou-me que uma amiga lhe disse que ia ficar cega.