Na que consideramos usualmente como a primeira forma de democracia, a ateniense, participavam apenas os cidadãos livres e o debate e argumentação era realizado localmente na Ágora. Muitos séculos depois, após as revoluções americanas e francesa, entrámos na democracia parlamentar 2.0. O que a caracterizava era não só o seu carácter representativo, mas o universo dos eleitores, que foi evoluindo e alargando-se nestes pouco mais de dois séculos até chegar ao sufrágio universal de hoje. Este alargamento do sufrágio alterou o funcionamento prático da democracia, mas manteve, no essencial, a forma de acesso à informação dos eleitores sobre as propostas políticas e os candidatos a deputados nas câmaras “baixas”. Os cafés e as coletividades, por um lado, os jornais a rádio e mais tarde a televisão (com poucos canais) por outro, foram, respetivamente, os locais e os canais em que o eleitor democrático acedia à informação ou ao conhecimento de algumas propostas políticas de partidos, do perfil dos candidatos. Essa informação era mediada por jornalistas com o seu código deontológico. A era em que já entrámos – a democracia digital 3.0 – é radicalmente diferente da que a precedeu e coloca desafios para os quais não estamos preparados como sociedades. Hoje, grande parte da informação consumida e produzida é através do telemóvel. O seu uso, permitiu que as grandes plataformas eletrónicas armazenassem uma quantidade colossal de dados sobre os cidadãos eleitores e desenhassem o seu perfil individualizado. Se o direcionamento (targeting) da propaganda política para cada cidadão era já possível, com mão humana, o desenvolvimento da inteligência artificial permite potenciar esta atividade a um extremo inimaginável. Dado que as instâncias de mediação da informação diminuíram significativamente, as fake news começam a distinguir-se dificilmente das notícias baseadas em factos e disseminam-se a uma velocidade enorme através das redes sociais. O escândalo da Cambridge Analytica, que usou dados pessoais de milhões de utilizadores do Facebook para, sem sua permissão, realizar propaganda política, foi o sinal de que estávamos já numa nova era e fez soar os alarmes dos Estados e da União Europeia.
É nesse sentido, e antecipando as eleições europeias de 2024, que as instituições da União Europeia – Comissão, Conselho e Parlamento Europeu– estão agora em trilóquio para chegar a um compromisso em torno da proposta da Comissão (COM 2021/731) de um Regulamento para regular a propaganda política em torno de dois eixos essenciais: maior transparência do que é propaganda política, evitando a opacidade dos anúncios políticos e regulação das atividades de direcionamento (targeting) e ampliação de propaganda política que usa dados pessoais dos cidadãos. Esta proposta parece-nos da maior importância no contexto da Democracia 3.0 em que já entrámos, mas não deixa de ter questões que mereciam ser melhor discutidas.
É nesse sentido que várias organizações da sociedade civil endereçaram uma carta aberta ao então Presidente do Conselho Europeu alertando para três pontos que me parecem essenciais e que não têm sido discutidos entre nós. Primeiro, que é necessário definir de forma razoável o que se entende por propaganda política. Na realidade o conceito de que propaganda política é tudo o que possa influenciar o resultado de uma eleição, um referendo ou um processo legislativo, alarga de tal modo o âmbito de aplicação de partes do Regulamento que inclui nele atividades de indivíduos ou organizações da sociedade civil na esfera pública, restringindo assim de forma indesejável a sua participação. Digamos que a DECO, ao apresentar o seu caderno de encargos para a defesa do consumidor antes das eleições estaria a fazer propaganda política. Obviamente que não desejamos isto. Segundo, que se deve limitar as necessárias sanções à violação, das regras definidas no regulamento, em serviços de propaganda política, que se distinguem da simples propaganda política, por serem remunerados. Finalmente, que dar um prazo até 2026 para implementar as medidas chave deste Regulamento parece ser um prazo excessivo.
Aquilo que é o desafio essencial da União Europeia hoje é equilibrar um necessário combate à manipulação das preferências políticas dos cidadãos com o assegurar do exercício da liberdade de expressão e da pluralidade do espaço público por parte de atores políticos e da sociedade civil. Portugal não deveria estar alheado deste debate pois terá de aplicar esta legislação europeia que está na eminência de ser aprovada.