Para uma potência nem sempre é fácil harmonizar ideologia (as convicções e princípios dominantes das suas instituições políticas) e razão de Estado (os seus interesses nacionais).

Viu-se isso durante a Segunda Guerra Mundial, quando dois Estados ideológicos, a União Soviética de Estaline e o Terceiro Reich hitleriano, se enfrentaram numa luta sem quartel: curiosamente, o enfrentamento viera depois de um pacto de não-agressão que escandalizara muitos militantes e simpatizantes de ambos os lados – o Pacto Ribentrop-Molotov. Isto em Agosto de 1939, nas vésperas da invasão da Polónia.

Hitler, traumatizado pela memória da guerra em duas frentes, queria estar tranquilo a Leste para enfrentar os ocidentais; Estaline esperava que a luta entre as “potências capitalistas” as enfraquecesse e que, no final, a Rússia comunista pudesse ser o árbitro do poder na Europa. Mas em Junho de 1941, Hitler sucumbira à convicção de que a URSS, “governada por judeus”, era o grande inimigo do povo alemão. Numa época em que Estaline já eliminara a maioria dos “velhos judeus bolcheviques”, não era um juízo muito acertado, mas Hitler achava que sim, tal como também achava que os Estados Unidos eram por eles comandados (apesar de ainda não se admitirem judeus nos clubes restritos de Washington).

Esta política ideológica anti-semita levara o Führer a abrir a porta à  derrota, ao invadir a Rússia, rejeitando o apoio dos ucranianos anticomunistas, prontos a marchar sobre Moscovo para vingar os horrores sofridos na fome induzida do Holodomor. Ao contrário, Estaline, com a Rússia ameaçada de derrota, metera o internacionalismo proletário na gaveta para apelar ao patriotismo dos russos na defesa da pátria invadida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A cruzada das democracias liberais

São contradições de conveniência que não perdem a actualidade, como bem o demonstrou o Presidente norte-americano na sua recente viagem ao Médio Oriente com visita ao Reino Saudita, que Biden, quando candidato, definira como “Estado pária”.

Nada de mais diferente, em termos de valores e cultura, que a monarquia teocrática saudita – um Estado com o nome de uma família – e a república americana inspirada nas Luzes do século XVIII. No entanto, os Estados Unidos e o Reino saudita eram velhos aliados desde que F.D. Roosevelt negociara com o rei Saud uma aliança de interesses. Como quase sempre em quase todo o mundo, comandava então a Realpolitik – e o deserto guardava grandes tesouros energéticos.

Com alguns atritos e problemas, este entendimento entre Rihad e Washington durou e perdurou, apesar da aliança americana com Israel. E os sauditas foram decisivos para o fim da URSS, servindo de banqueiros dos interesses americanos em algumas guerras quentes da Guerra Fria – do Afeganistão à África Subsaariana – e inundando os mercados de petróleo barato, num tempo em que Moscovo vivia da exportação de crude. De resto, a vitória do Ocidente deveu-se em grande parte a alianças com Estados muito pouco liberais e democráticos, como a Arábia Saudita e a China.

O homem forte de Rihad

O actual homem forte da Arábia Saudita é o príncipe herdeiro Mohamed bin Salman, de 36 anos, filho do rei Salman. O Rei tem 86 anos, está doente e Mohamed bin Salman é o poder de facto. Em 2018, no consulado saudita em Istambul, o escritor e jornalista dissidente Jamal Khashoggi foi assassinado e esquartejado. Biden, na campanha eleitoral de 2020, qualificou a Arábia Saudita de “Estado pária”, interrompendo a política de aproximação de Trump. E, já na sua presidência, num relatório de 11 de Fevereiro de 2021, os serviços de inteligência norte-americanos tinham identificado Mohamed bin Salman como mandante da morte de Khashoggi, colunista do Washington Post e residente nos Estados Unidos.

Ao evocar razões ideológicas no conflito com Moscovo, insistindo na cruzada das “democracias liberais” contra o “eixo do mal” das “autocracias iliberais” para enfrentar uma Rússia que não parece muito abalada pelas sanções, Biden tenta repetir a política da Administração Reagan, incitando os sauditas e o Médio Oriente em geral a produzir mais petróleo para atirar para baixo os preços.

Na viagem da semana passada, o Presidente garantiu aos líderes do Conselho do Golfo – Arábia Saudita, Qatar, Kuwait, Bahrein, Omã e Emirados Árabes Unidos – e aos responsáveis do Egipto, do Iraque e da Jordânia que os Estados Unidos não iam abandonar a região à China, à Rússia e ao Irão. O Presidente americano apelou então aos líderes presentes que liberalizassem e democratizassem os seus países, permitindo que os cidadãos os criticassem sem medo de punições ou represálias. Entre os representantes ali reunidos havia sete monarcas autoritários, o general Abdel Fattah el-Sisi do Egipto que, perante ameaça dos Irmãos Muçulmanos, dera um golpe de Estado e substituíra o presidente eleito com a bênção dos Estados Unidos e de outras democracias aliadas, e o primeiro-ministro iraquiano. Não seriam a assembleia mais liberal do Globo.

A crise de credibilidade dos Estados Unidos na região acentuou-se simbolicamente quando Obama decretou uma linha vermelha que o sírio Assad ultrapassou. Não lhe aconteceu o que quer que fosse e Putin salvou o regime de Damasco. Trump conseguiu aproximar Israel dos Emirados e do Bahrain e contribuiu para o discreto degelo entre os sauditas e Israel que o “inimigo comum”, o Irão, estava já a causar.

A posição de Biden não é fácil: a guerra da Ucrânia, o impasse no terreno e as sanções ocidentais à Rússia parecem estar a deixar os sancionadores, os países europeus, à beira de uma crise energética, económica e social de graves consequências. Para encontrar alternativas, numa altura em que são os próprios russos a cortar fornecimentos, países como a Alemanha estão a pôr em causa a transição energética e a reabrir centrais de carvão. Daí que Biden quisesse convencer os seus interlocutores árabes da OPEC a intensificar a produção para fazer baixar os preços. Mas na quinta-feira, 21 de Julho, a Bloomberg e a Reuters noticiavam que os Estados Unidos não esperavam para já um aumento de produção naqueles países e que o crude continuava acima dos 100 dólares.

Contradições

Além deste insucesso, o Presidente americano teve de mudar radicalmente de atitude em relação ao príncipe Salman.

Salman começou por mostrar-se um autocrata reformista – liberalizando espectáculos, cinemas, teatros e concertos e anunciando que o Reino voltaria a “um Islão moderado, aberto ao mundo e a todas as religiões”, com a autoridade da temida “polícia religiosa” restringida e as normas de vestuário liberalizadas. Mais importante, fora a legislação sobre os direitos das mulheres, que tinham passado a poder guiar e a protagonizar sem tutela masculina uma série de actos jurídicos de família.

As reformas de Mohamed bin Salman não eram total novidade – o anterior rei, Abdullah, já abrira o direito de voto às mulheres e alargara a sua esfera de acção. Só que, paralelamente a esta modernização, o Príncipe intensificara a repressão das oposições, dos dissidentes e dos próprios familiares, escalara a guerra no Iémen e teria mandado liquidar Kashoggi.

Este tipo de políticas não era novo entre os “déspotas esclarecidos”. Daí o choque dos observadores com a informal saudação pandémica, o amistoso “toque de punhos”, entre Biden e Mohamed bin Salman, que uns viram como uma intimidade entre compinchas, outros como uma forma de Biden não apertar a mão a Salman. (Segundo o New York Times, os jornalistas americanos, ao contrário doa sauditas, não tiveram acesso a este primeiro encontro e foram os serviços de informação sauditas que divulgaram profusamente o filme e as fotografias do evento).

 Fred Ryan, do Washington Post, o jornal onde escrevia o desaparecido Kashoggi, comentou que o fist bump fora pior que um aperto de mão, “ao projectar um nível de intimidade e à-vontade” que dava a Mohamed bin Salman a “injustificada redenção” que desesperadamente procurava.

Interrogado pelos jornalistas, Biden afirmou que levantara o problema do assassinato de Kashoggi no seu encontro com o Príncipe herdeiro, e que Salman lhe dissera não ter sido pessoalmente responsável pelo crime, retorquindo-lhe o Presidente que não acreditava nele. Mas o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Adel al Jubeir, contrariou a versão de Biden, dizendo que o Presidente não falara do assunto com Mohamed bin Salman e que se limitara a discorrer sobre direitos humanos em geral.

Segundo Peter Baker (New York Times, 15 de Julho 2022), a noiva de Kashoggi, a turca Hatice Lengiz, reagiu no twitter às notícias do encontro, imaginando a reacção do noivo ao comportamento do Presidente norte-americano: “É esta a responsabilização que Biden garantiu pelo meu assassinato? O sangue das próximas vítimas de Mohamed bin Salman está nas suas mãos”.

How true is that?

Numa crónica para o New York Times intitulada “Biden says he confronted the Saudi prince over Kashoggi. How true is that?”, Peter Baker conta ainda que a Casa Branca confirmou a versão de Biden, dizendo que o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros mentira. No entanto, Baker não deixa de referir a tendência de Biden para efabular – “Mr. Biden is by nature a storyteller with a penchant for embellishment.” –, apresentando vários exemplos de autoatribuição de frases corajosas em confronto com ditadores, que testemunhas presenciais não confirmaram.

A crer no relato do Presidente, em Moscovo, em 2011, quando era vice-Presidente de Obama, Biden teria, por exemplo, dito a Putin: “Estou a olhar para os seus olhos e não creio que você tenha alma”. Várias testemunhas da conversa não se lembram de ouvir semelhante coisa. Também em 1993, o então senador Biden teria dito ao líder sérvio Misolevic, responsável de graves crimes de guerra, que o considerava um “damn war criminal” que “deveria ser julgado como tal”. Biden contou-o em livro, em 2007, mas nenhuma das pessoas presentes no encontro se lembra de ter ouvido tal.

Histórias como esta povoam a narrativa de um Presidente que tende a autorretratar-se como um americano tranquilo a enfrentar os tiranos deste mundo em nome dos valores do Ocidente.

Mas, how true is that?