Anda tudo admirado com a subida do populismo, e das extremas direitas na Europa e em Portugal, mas andam muitos a promovê-la, sem se dar conta. Uma das razões, entre outras, da subida dos partidos populistas é apresentar-se a democracia como aquilo que ela não é e ter receio de mostrar e explicar aquilo que ela é e como funciona. Numa sociedade plural em que os eleitores e os partidos têm perspetivas diversas sobre as desejáveis políticas públicas, o compromisso, a negociação e a transação política são inevitáveis quer dentro dos partidos (sobretudo em caso de maioria absoluta como agora existe) quer entre partidos (em caso de maioria relativa como existirá após Março de 2024).

O pequeno escândalo desta semana é a alegada troca de favores no final de 2020 entre o governo PS, então minoritário, que quer aprovar o Orçamento de Estado de 2021 e o PCP que deseja a renacionalização dos CTT. Quando a notícia surgiu, pelo Jornal Económico, sugeria-se que era para obter o apoio do Bloco de Esquerda, mas a versão posterior do Negócios e as declarações políticas dos líderes de PCP e BE tornam mais verosímil a negociação com PCP. Ao contrário do BE que votou contra, o PCP absteve-se e com isso viabilizou a aprovação do OE2021.   O Estado, através da Parpública adquiriu, antes da renegociação do contrato de concessão, 0,24% do capital dos CTT, numa perspetiva de ir reforçando a sua participação no capital da empresa até obter uma posição de cerca de 13%, perto da posição detida pelos maiores accionistas, e deste modo passando a deter uma palavra relevante na empresa.

É óbvio que não foi 0,24% do capital dos CTT que levou um partido (o PCP que deseja que o Estado tenha 100% do capital) a viabilizar o orçamento de Estado. As negociações políticas, nomeadamente em torno do diploma de maior alcance nacional (o Orçamento de Estado), fazem-se na base de um pacote de propostas e não de uma medida isolada. Agora que pode ter contribuído pode. And so what? As negociações políticas são não apenas inevitáveis, mas o cerne do funcionamento da democracia. Resultam de uma coisa muito simples. Os votos não revelam a intensidade de preferências dos partidos. Se o partido A, quer muito aprovar a sua proposta X e causa-lhe pouco desagrado, e votaria contra, a proposta Y apresentada pelo partido B, e se com o partido B acontece o inverso, ambos os partidos têm um forte incentivo a aprovar ambas as propostas. Esta negociação política (ou “troca de votos”) tem até um termo em língua inglesa: logrolling. Como mostramos em vários livros (1), o logrolling não apenas é universal em democracias parlamentares como pode levar a uma melhoria do bem-estar da sociedade (também pode levar à deteriorização). Criticar ou não querer aceitar negociações políticas, é o mesmo que não aceitar o modus operandi democrático. Não tenho grandes dúvidas que a entrada de capital nos CTT teve também um objetivo de contribuir para a abstenção do PCP, mas parece-me perfeitamente natural pois essa decisão política não colide com outros objetivos relevantes de interesse público. Pedagogicamente, o PS poderia perfeitamente, e deveria, ter assumido isto sem problema.

Tratou-se de uma operação financeira do Estado estritamente legal e economicamente justificada (os CTT é uma empresa lucrativa hoje e distribui dividendos, convém recordar que em 2012, antes da privatização também o era). Ou seja, ao investir nos CTT o Estado não está a queimar dinheiro dos contribuintes. Mais, se evoluísse para  uma posição qualificada no capital social dos CTT dar-lhe-ia um peso maior na monitorização do serviço público prestado (e contratualizado no contrato de concessão). Aquilo que devia estar a ser discutido era qual deve ser a participação do Estado no capital da empresa.

Na quarta-feira da semana que vem o Chega leva a votação na Comissão de Orçamento e Finanças um requerimento com carácter de urgência para audição do Ministro das Finanças  sobre este tema. Talvez convenha lembrar a André Ventura, que ferozmente ataca as “negociações políticas” em torno dos CTT, que ele próprio está envolvido numa de muito maior magnitude. Pretende cativar o PSD para em troca de deixar cair (ele diz adiar) as suas emblemáticas propostas de instituição da prisão perpétua e da castração de pedófilos (ambas inconstitucionais) poder vir a integrar um governo com o PSD.

PS (1) Para o leitor que queira aprofundar as implicações do logrolling, o tópico é abordado em dois livros: “Portugal: dívida Pública e défice democrático” (Fundação Francisco Manuel dos Santos) e “Economia e Finanças Públicas” (6ª ed. Escolar Editora).

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