A sugestão de André Ventura de apresentar um “plano específico de abordagem e confinamento para as comunidades ciganas” leva-nos a uma discussão que, honestamente, me custa voltar a ter. Ainda assim, a julgar pelo entusiasmo e silêncio cúmplice de tantos, não há como fugir ao assunto. Voltemos então ao básico.

Antes de me acusarem de refém do politicamente correto ou de tapar o sol com a peneira, deixem-me desde já assumir que, à semelhança de Ventura, eu também acho que existe um problema com a comunidade cigana em Portugal. Sendo certo que todas as generalizações são perigosas e que não podemos tomar a parte pelo todo, a verdade é que o número de incidentes envolvendo ciganos é demasiado significativo e as situações de desrespeito destes por normas básicas de respeito e convivência não são, infelizmente, apenas casos pontuais. O problema está na forma como propomos lidar com esta realidade.

A Constituição da República Portuguesa consagra, e bem, que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei. Daí que ninguém possa ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever por pertencer a uma determinada categoria, designadamente em função da sua raça ou etnia. Um Estado de Direito caracteriza-se precisamente por assegurar, por um lado, a possibilidade de escolhermos os nossos representantes mediante eleições livres (democracia) e, por outro, a proteção dos direitos das minorias – que não ficam, assim, reféns da vontade de maiorias circunstanciais. Estas regras, que todos damos por óbvias e garantidas, não são obra do acaso; são o produto de muitos erros e abusos cometidos ao longo da História, dos quais os totalitarismos de má memória do século passado são o expoente máximo.

Assim, uma norma coerciva é aplicável a um caso concreto não em função do sujeito, mas em função do ato praticado. Ninguém está condenado à discriminação e marginalização por nascer no berço errado. São os nossos comportamentos e as nossas decisões que ditam aquilo que somos e determinam o nosso futuro individual.

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É neste contexto que a proposta de apresentar um “plano específico de abordagem e confinamento para as comunidades ciganas” nos dias que correm é – para não dizer mais – um escândalo. Não por não existir um problema com as comunidades ciganas (que existe), mas por procurar justificar um mal com outro, por fazer tábula rasa de um dos princípios mais básicos e estruturantes da nossa civilização e por reincidir em erros gravíssimos do nosso passado recente. A solução para o problema das comunidades ciganas não passa pela criação de leis especificas para este grupo (o que, já agora, seria manifestamente inconstitucional), mas por assegurar o cumprimento da Lei – se necessário, como em qualquer outra situação, através do poder coercivo do Estado.

O entusiasmo e silêncio cúmplice de várias pessoas com esta proposta de Ventura fez-me recordar os ensinamentos de Hannah Arendt. Foi precisamente nesta adesão acrítica a ideias discriminatórias que Hannah Arendt encontrou, no século passado, as raízes da “banalidade do mal”. Arendt reportava-se às pessoas que haviam prescindido da sua capacidade critica e se tornaram cúmplices do Holocausto. O que despertou a atenção da autora judia não foram as mentes perversas e ideologicamente comprometidas, capazes de praticar o “mal radical”, mas as pessoas vulgares ou normais; aquelas que, em circunstâncias normais, seriam incapazes de cometer um crime mas que, em virtude da ausência de reflexão critica, se tornaram coniventes com os crimes mais hediondos.

Feitas as devidas distâncias (porque comparar as ideias de Ventura às de Hitler seria logicamente absurdo e desonesto), fica o princípio: seria bom que, dentro do Chega, pudéssemos ver militantes e dirigentes com a liberdade de espírito suficiente para se distanciarem deste tipo de propostas racistas e darem-nos razões para não catalogar o partido como de extrema-direita. O silêncio em política tem um preço. Feitas novamente as devidas distâncias, o famoso poema de Martin Niemoller recorda-nos o quão elevado pode ser esse preço: “Primeiro vieram buscar os comunistas e eu não disse nada pois não era comunista. Depois vieram buscar os socialistas e eu não disse nada pois não era socialista. Depois vieram buscar os sindicalistas e eu não disse nada pois não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus e eu não disse nada pois não era judeu. Finalmente, vieram buscar-me a mim – e já não havia ninguém para falar.

Esta é, seguramente, uma boa altura para separar o trigo do joio. Para saber onde pairam os liberais e os tiranos em ascensão.