Uma das ideias mais mencionadas no debate público é a “necessidade de descentralizar o país”. O argumento base (com o qual concordo) é que uma decisão de política pública é mais eficiente se estiver mais perto do território onde se vai sentir o seu efeito. Ou seja, as pessoas de uma dada região sabem melhor onde deve passar uma nova estrada ou como deve ser gerida a sua escola, do que um burocrata sentado em Lisboa. Desde que as regras financeiras sejam devidamente respeitadas, esta opção evitaria investimentos desajustados à realidade local, o que a prazo resultaria em menores custos para o país.
No entanto, há uma parte do Estado em que é difícil haver transferência de competências: os serviços centrais (direções-gerais, empresas públicas, etc.). E, com o desenrolar do debate, facilmente se cai na tentação simplista de afirmar que a solução é “espalhar o Estado pelo território”. Veja-se, por exemplo, a ideia deste Governo em transferir o Infarmed para o Porto, ou a antiga intenção de Pedro Santana Lopes em deslocalizar ministérios para outras regiões. Quais os benefícios destas ideias? Confesso que ainda hoje não percebi (só mesmo o aumento o fluxo de automóveis nas várias auto-estradas vazias de que dispomos).
O problema destas propostas é que continuam a basear-se nos mesmos argumentos de há 20 anos (por incrível que pareça, o referendo sobre a regionalização foi já em 1998): só a difusão (forçada) de serviços pelo território permite a igualdade de oportunidades para todas as regiões. A meu ver isto é um erro – num país pequeno como Portugal, a multiplicação de pequenos centros reduz a massa crítica de cada um deles e impossibilita a existência de sinergias. O caso do ensino superior é paradigmático – a maioria do excessivo número de universidades e politécnicos que existe não têm capacidade científica para competir a nível internacional.
O mundo de hoje assenta cada vez mais no paradigma digital, em que as plataformas melhor sucedidas são aquelas que permitem o contributo “descentralizado” de todos os utilizadores – desde o conhecimento, em que a Wikipedia é o exemplo mais relevante, à criação de moeda, com as criptomoedas a representar os casos mais disruptivos. Se estes exemplos são possíveis em áreas aparentemente centralizadas por natureza, porque é que não é possível adaptar o conceito à governação pública?
A verdade é que é possível e já existe – é o que se designa de “crowdsourcing policy”. Este é um “processo através do qual as organizações usam as tecnologias de informação para envolver grupos de pessoas com o objetivo de resolver problemas ou gerar ideias” (definição de Tanja Aitamurto, da Standford University). Ou seja, em vez do desenho de políticas públicas ser centralizado em gabinetes de estudos, passa a ser definido de forma colaborativa por todos os cidadãos que se interessem pela matéria (independentemente de serem, ou não, especialistas).
Um excelente exemplo é o processo constitucional de 2010/2011 na Islândia. Primeiro, foram constituídas várias assembleias nacionais de discussão, que submeteram a sua opinião sobre a constituição em vigor. Depois, foi designado um conselho de reforma da constituição que se encarregou de escrever uma proposta com base nos contributos recebidos. Por fim, este documento foi publicado online, onde podia ser comentado por qualquer cidadão. Uma equipa central reviu todos os contributos e incorporou os que faziam sentido no espírito da proposta. O documento final, escrito colaborativamente, foi sujeito a discussão e aprovação no Parlamento. Além da vantagem de permitir que qualquer pessoa possa dar a opinião, e eventualmente melhorar a proposta, esta foi uma forma de mobilizar todo o país para um importante debate coletivo.
Outro caso interessante é o “Red Tape Challenge” lançado em 2011 no Reino Unido, onde o objetivo do Governo era reduzir drasticamente a burocracia. Faria então sentido pedir propostas a burocratas? Naturalmente que não. Foi dada a palavra aos cidadãos (os que todos os dias sofrem com a complexidade do Estado) para que sugerissem a legislação que podia ser simplificada. A iniciativa foi um sucesso: foram recebidos 27.000 contributos, o que permitiu eliminar 2.400 das 21.000 regras/ procedimentos em análise. Mais uma vez, um processo descentralizado (com escrutínio central) permitiu alcançar resultados com benefícios tangíveis.
Naturalmente que este modelo tem desafios. Esta abordagem implica que: primeiro, se definam áreas prioritárias de redefinição de políticas públicas, começando pelas que mais impacto têm no futuro coletivo (ex: educação ou segurança social); segundo, se operacionalize um processo eficiente de recolha de contributos, baseado em soluções digitais; terceiro, se contrate uma equipa que faça a triagem da informação, analise o conteúdo e densifique tecnicamente as medidas. Pode ser uma solução complexa, mas não faz mais sentido que transferir o Ministério da Agricultura para Viseu?
O modelo de “crowdsourcing policy” tem esta virtude: permite que qualquer um de nós contribua de forma direta na melhoria da gestão dos recursos públicos. Voltando ao início do texto, esta é uma forma de aproximar o nível da decisão dos agentes que sentem os seus efeitos. Ou seja, descentralizar não é espalhar o Estado – é pô-lo na mão dos cidadãos.
Tiago Espinhaço Gomes tem 31 anos e é consultor de serviços financeiros na Oliver Wyman desde 2016. Anteriormente foi economista no Conselho das Finanças Públicas (2013-2016), assessor do ministro das Finanças durante o programa de ajustamento económico (2011-2013), e consultor de gestão na McKinsey & Company (2009-2011). É licenciado em Economia pela Faculdade Economia do Porto.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.