Estamos em Setembro. No centro de Lisboa, sentada na esplanada de um café de bairro dos anos 70, ali entre a Casa da Moeda e o Campo Pequeno, observo. É terça-feira. A vida agita-se no seu regresso à normalidade: os estafetas cruzam as ruas de moto, bicicleta ou trotineta eléctricas numa gincana entre ciclovias, passeios, passadeiras e transeuntes. Visto daqui, parece um bailado silencioso, complexo e cosmopolita.

De repente, do lado oposto da rua, um homem grita: “Filho da p*! Vai para a tua terra. Nós é que somos de Lisboa. Nós é que devemos estar aqui. Isto é nosso! Seu cab*, filho da p*! Dou-te uma facada se te apanho no Bairro Alto! Vai p’rá tua terra! Por isso é que é preciso votar no *, para acabar com esta gente!  Era um tiro nos cor*!” A ameaça é dirigida ao estafeta que passou por ele sem aviso no momento em que o homem, jovem, grande e sólido de culturismo e esteróides, se preparava para atravessar a rua.  Tarefa difícil, na verdade, uma vez que entre o passeio de um lado e o lancil do outro, tem de se atravessar o estacionamento para os carros, a ciclovia e a estrada. Quando se o faz fora da passadeira aumenta o nível de dificuldade. O estafeta seguiu, sem olhar. O homem ficou no mesmo sítio, ainda mais inchado de ódio, dono da rua, da cidade, do país. Os impropérios continuaram, já sem o motivo, repetidos em círculo, cada vez mais alto, acompanhado de gestos, de passos em frente e recuos. Já não lhe interessava o outro lado da rua. A máscara no queixo, a raiva a sair pelos olhos, as palavras atiradas como mísseis sem querer saber em quem acerta. O discurso de ódio agora politicamente legitimado e normalizado pela extrema direita, pelas redes sociais, pelas caixas de comentários anónimos.

O que nos leva a normalizar o discurso de ódio? Ou melhor, os discursos de ódios vertidos nesta ou naquela direção e de origens distintas? Ódios transversais ou tribalizantes, legitimados pelas extremas direitas ou extremas esquerdas, e ao abrigo das religiões ou de interpretações religiosas radicais, ou multiculturalmente justificados. A dessensibilização. Quanto mais vezes estivermos perante um acontecimento estranho, menos estranheza o acontecimento nos provocará. A repetição de um comportamento acaba por torná-lo aceitável. Regular. Normal. O que inicialmente nos repugna banaliza-se. A banalidade do mal, como referia Hannah Arendt, cresce na ausência de pensamento, de crítica e propaga-se pela trivialização do ódio e da violência. Cresce onde lhe é dado espaço. A abstenção também faz parte desse espaço: é o lugar omisso onde tudo cresce. Mais do que indiferença a abstenção é a silenciosa anuência ao que quer que seja. Ao mal também. Se não votar apesar de ter esse direito, vote porque é o seu dever.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR