Dez anos volvidos do início da Crise do Euro, eis-nos chegados a um dos maiores falhanços de sempre da União Europeia: a vacinação em massa contra a Covid-19. Devido ao seu peculiar desenho institucional, a legitimidade política da União Europeia baseia-se, desde sempre, naquilo que os cientistas políticos denominam output legitimacy, isto é, a capacidade de gerar um nível de bem-estar aos cidadãos que, caso os países não estivessem integrados, seria mais baixo. Os benefícios económicos e sociais da pertença à União foram, de resto, um argumento esgrimido à saciedade no debate sobre o Brexit. Juntos somos fortes, diz-nos a burocracia de Bruxelas. A comparação com a campanha de vacinação nos Estados Unidos coloca cada vez mais dúvidas sobre a capacidade de Bruxelas em satisfazer o bem-estar dos cidadãos.
Devido à minha profissão, falo continuadamente com colegas espalhados por toda a Europa. Mesmo entre elites académicas e intelectuais, normalmente com sentimentos francamente pró-europeus, parece existir uma crescente insatisfação e contestação pública à gestão que a União Europeia está a fazer da crise da vacinação. Naturalmente, em Portugal, esta insatisfação é muito menor, não porque os Portugueses não desejem ser vacinados rapidamente, mas, porque existe a percepção – correcta, de resto – que, mesmo falhando na vacinação, a União Europeia é imprescindível para manter o regime ligado à máquina e a ilusão de bem-estar que os partidos portugueses mantêm.
Para percebermos como chegámos até aqui, olhemos para um conjunto de factos, comparando a estratégia de vacinação da União Europeia com os Estados Unidos.
Recuemos ao Verão de 2020. A hipótese do desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz era, então, ainda algo incerta. A 8 de Agosto de 2020, o Economist fazia um ponto de situação sobre as pré-encomendas de vacinas então ainda em desenvolvimento. A figura que mostro abaixo mostra-nos já as causas profundas do total falhanço da União Europeia em conseguir vacinar os seus cidadãos na Primavera de 2021. Por um lado, vemos que Estados Unidos e Reino Unido escolheram uma estratégia de não colocar os ovos todos no mesmo cesto. Isto é, já em Agosto de 2020, os Estados Unidos decidiram comprar vacinas da AstraZeneca, Pzifer, J&J e Sanofi. Nesta compra adiantada, os Estados Unidos gastaram 9,3 mil milhões de dólares. A União Europeia, pelo contrário, em Agosto de 2020, tinha feito apenas contratos com a AstraZeneca e com a Sanofi, num total de 843 milhões de dólares. Grosso modo, para uma população inferior à da União Europeia, em Agosto de 2020, os Estados Unidos tinha já comprometido dez vezes mais dinheiro em vacinas. Para além disso, a União Europeia apostou forte na vacina da Sanofi, desenvolvida pela indústria francesa. Seria fastidioso ter de explicar aqui os motivos que, num momento de crise, levaram a burocracia de Bruxelas a ceder a pressões políticas dentro da União para comprar uma vacina que, em Março de 2021, está ainda na segunda fase de desenvolvimento.
Os meses passavam aceleradamente, com o número de mortos a subir em flecha e um Outono que se previa difícil em todo o mundo. Trump era ainda presidente dos EUA. No entanto, as agências federais norte-americanas não brincavam em serviço. Olhemos agora para outro indicador sobre o processo de vacinação: os contratos entre os países e as empresas. Em Maio de 2020, o Reino Unido havia já firmado um contrato com a AstraZeneca. Em Julho, o Reino Unido e os Estados Unidos assinaram contratos com a Pfizer para a entrega de vacinas. Para além disso, os Estados Unidos contrataram 100 milhões de doses com a Moderna em Agosto de 2020. Entretanto, a União Europeia levava o seu tempo: assinou o contrato com a AstraZeneca apenas em Agosto de 2020 e com a Pfizer em Novembro. Chegados ao Natal de 2020, segundo a Bloomberg, os Estados Unidos tinham já contratualizados 18 mil milhões de dólares em vacinas, enquanto a União Europeia, para uma população superior, tinha gasto apenas 9 mil milhões.
Mais, os contratos realizados entre a União Europeia e as farmacêuticas demonstram o total amadorismo jurídico das elites de Bruxelas. Enquanto os Estados Unidos e o Reino Unido firmaram contratos com metas de entrega claras e respectivas penalizações financeiras para as empresas caso falhassem, a União Europeia abdicou do seu direito de sancionar as empresas farmacêuticas em caso de atrasos. O contrato com a AstraZeneca, revelado já em 2021, perante pressão política fortíssima das opiniões públicas de países como a Alemanha, a Áustria, a Suécia e a Itália, revela que a União Europeia apenas exigia que fossem encetados os “best reasonable effort[s]” para que as entregas das vacinas ocorressem, segundo o contrato, “earliest possible“.
Por último, deixem-me salientar o papel absolutamente determinante que os Estados Unidos e o Reino Unido tiveram em pagar a investigação que permitiu o aparecimento da vacina no momento em que os resultados eram ainda incertos. De acordo com dados coligidos do Financial Times, o Reino Unido gastou cerca de 29 libras/per capita, enquanto os Estados Unidos gastaram 27 libras/per capita em investigação. Apesar da retórica e da propaganda sobre economia baseada no conhecimento, a União Europeia gastou a módica quantia de 4 (quatro!) libras/per capita a financiar a investigação que deu origem à vacina.
Existe o velho dictum que a União Europeia aumenta a sua integração em tempos de crise. Houve uma vontade clara de integrar uma área – a saúde – que, até à pandemia, era vista como claramente pertencente aos Estados-membros. Basta ver, de resto, que a União Europeia não tem uma Direcção Geral de Saúde com peso político, tendo apenas aquilo que, cá, equivaleria à FDA (Food and Drug Administration) nos Estados Unidos, um órgão eminemente técnico-científico. Não surpreende, de resto, que esta direcção geral seja liderada por uma política cipriota, Stella Kyriakides, da qual nunca ninguém ouviu falar antes, nem durante esta crise.
Chegados aqui, a União Europeia corre sérios riscos nos próximos meses, com o aproveitamento político de populistas vários deste falhanço clamoroso. Será difícil fazer propaganda quando os Europeus virem os Americanos praticamente de volta a uma vida normal em meados do Verão. Para além disso, o atraso na vacinação aumentará, e muito, o custo económico da crise que vivemos. Infelizmente, enquanto eleitor não disponho de quaisquer mecanismos para sancionar, nas próximas eleições, os decisores que cometeram erros, acima de tudo de soberba e incompetência. Sendo uma burocracia, sabem que a sua primeira função é a auto-sobrevivência e reprodução.
P.S.: Diz que Portugal ‘lidera’ a União Europeia este semestre. Continuo à espera de ouvir o Dr. Costa pronunciar-se sobre estes assuntos.