Temos assistido a um movimento crescente de alteração de obras literárias com o objetivo de eliminar qualquer “linguagem potencialmente ofensiva”. Em terras anglo-saxónicas, esta tarefa tem sido desempenhada pelos sensitivity readers, pessoas cuja missão é analisar obras literárias e aplicar este conceito subjectivo de “eliminar linguagem potencialmente ofensiva”. Os ventos não têm soprado com especial fulgor do lado de lá do Atlântico e o fenómeno (ainda) não assume especial relevo em Portugal. Mas, e se tal acontecer?

Em Portugal, a legislação é clara quanto à possibilidade de alterar e modificar obras literárias que ainda não caíram em domínio público: exige-se que o autor, os seus herdeiros ou os titulares dos respectivos direitos de autor autorizem previamente as alterações ou modificações das obras. Nessa medida, quando uma obra literária protegida por direitos de autor é modificada sem autorização do respectivo autor, estamos perante uma violação de direitos de autor com consequências jurídicas.

No que respeita às obras literárias que integram o domínio público, a questão é relativamente simples, uma vez que a sua utilização é livre, e, portanto, qualquer pessoa poderá adaptá-la e modificá-la. Estamos, neste caso, perante uma nova criação intelectual, as denominadas obras derivadas.

A questão adensa-se quando trazemos ao debate o conceito de fair use e utilização livre de obras protegidas por direitos de autor. Será possível alegar que estas alterações se enquadram no conceito de fair use? O conceito de fair use permite a utilização de uma obra protegida por direitos de autor sem a autorização do seu titular para fins educacionais, científicos, informativos ou críticos. No entanto, o fair use não é uma justificação (nem um pretexto) para modificar uma obra literária sem autorização do autor original, principalmente se a alteração afetar a integridade da obra original.

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Feito este breve enquadramento legal, impõe-se, sobretudo, uma reflexão crítica sobre este novo movimento. As modificações de obras literárias com o objetivo de remover referências como as que temos assistido podem alterar a representação de personagens, a história ou o enredo, e no limite, a própria mensagem que o autor pretende transmitir com a sua obra. Não há como negar que este tipo de modificações pode censurar as ideias e o pensamento que o próprio Autor quis transmitir com a sua obra. E, também parece evidente que, em última análise, esta nova tendência poderá beliscar a liberdade individual do próprio leitor.

Com efeito, não estarão os sensitivity readers a impor padrões para (alegadamente) promover a diversidade e inclusão? Padrões esses que, em última análise, não são mais do que mecanismos de censura? Defender a alteração de obras literárias em prol das minorias não é mais do que aceitar uma atitude paternalista perante um vasto universo de leitores. De facto, apenas pode defender-se esta nova tendência partindo-se da premissa de que toda a população é inculta ou impreparada para interpretar e contextualizar determinada obra literária, para ter sentido crítico ou mesmo discernimento para destrinçar a fantasia e o fantástico da realidade.

Afinal, a literatura é uma forma de arte que reflete a sociedade em que vivemos. E não restam dúvidas de que a sociedade se adapta à realidade e evolui. Como tal, é importante que esta arte possa ser apreciada e estudada tal como foi originalmente escrita, sem qualquer interferência ou modificação, mas sempre com um sentido crítico. Qualquer tentativa de alterar uma obra literária, removendo ou modificando descrições físicas, referências étnicas ou quaisquer outras expressões potencialmente ofensivas terá seguramente consequências nefastas no futuro. A bem da liberdade de expressão e da liberdade de pensamento, a arte não pode ser censurada.