Durante mais de dois anos e meio, a pretexto de um vírus respiratório oriundo da China, muita gente com relevância e notoriedade públicas manteve-se asquerosa e cobardemente muda perante os mais canalhas atentados à liberdade a que assistimos nas últimas décadas. Esses mesmos que procuram agora voltar a uma sã convivência social, disfarçando a sua condição de alucinados egoístas borrados de medo que os fez condescender com políticas medievais e uma vertigem sádica a pender para o fascismo sanitário.

Quase todos os políticos, dirigentes e especialistas que orgulhosamente se autoproclamaram «agentes de saúde pública» e que manipularam a população com base num pervertido método dito «científico» para um execrável caminho de segregação, condicionamento psicológico e controlo comportamental, estão hoje a ensaiar um revisionismo da história das suas responsabilidades e culpas pela desgraça social e a calamidade do excesso de mortalidade que as suas decisões provocaram e conselhos apoiaram.

Entretanto, são já mais de duas dezenas os acórdãos do Tribunal Constitucional que esclareceram que as medidas tomadas pelo Governo, autoridades regionais, Direcção-Geral de Saúde e promulgadas pelo Presidente da República a coberto do suposto «combate» à epidemia sars-cov-2 atropelaram direitos fundamentais dos portugueses e competências da Assembleia da República. Os juízes afirmaram mesmo que constituíram uma forma de privação da liberdade total inadmissível num Estado de Direito e que essas normas podem considerar-se mais gravosas até do que o encarceramento prisional.

Já poucos se lembram que em Abril de 2020, quando o primeiro-ministro foi questionado sobre a legalidade das medidas tomadas pelo governo, António Costa disse de forma bruta e típica de um tiranete: “Eu também sou jurista e sei a capacidade enorme que os juristas têm de inventar problemas. Felizmente, a realidade da vida é muitíssimo mais prática”; “Diga o que disser a Constituição”. Na mesma altura disse com o seu habitual sorriso cínico “respeitar muito as dúvidas dos constitucionalistas” e passou a bola para Marcelo. Contudo, apesar de Marcelo ser professor de Direito e Constitucionalista e enquanto Presidente da República ser sua principal função zelar pelo cumprimento da Constituição do país, não só não cumpriu os seus deveres, como foi conivente com uma flagrante ilegalidade, incentivando, na prática, a manutenção de uma inconstitucionalidade. Porém, o Tribunal Constitucional deixou finalmente claro que essas decisões foram um abuso desprovido de qualquer controlo ou sensatez.

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Em Portugal não existem processos de impeachment a presidentes da República pelo manifesto e grosseiro incumprimento das suas funções. Por isso Marcelo continuará impávido no Palácio de Belém. Quanto ao primeiro-ministro, os tiques de brutamontes político e falta de escrúpulos para se manter no poder são bem conhecidos e, portanto, não há nenhuma expectativa de um acto de contrição e muito menos de demissão.

Mas depois do contundente raspanete dos tribunais, as ratazanas políticas entendem que numa futura emergência sanitária “é preciso ter tudo bem certinho” e por isso querem fazer uma revisão da Constituição para tornar constitucional tudo o que se passou, ou seja, em vez de conformar as leis e a prática política ao cumprimento da Constituição, altera-se a Constituição existente para dar suporte legal aos actos governativos e administrativos que forem convenientes a quem está no poder.  Por isso o bastonário da Ordem dos Advogados alertou que se trata de uma “deriva muito preocupante” e o Presidente do Tribunal Constitucional uma “situação comatosa” do Estado de direito.

Tal como todos os partidos abriram no Parlamento a porta para a reinstalação da censura por via legal com a aprovação da «carta dos direitos digitais», também agora PSD e PS estão mancomunados para subverter a Constituição, garantindo salvo-conduto a intromissões dos governos na liberdade das pessoas, desconsiderando direitos e garantias dos cidadãos contra abusos do Estado e conferindo enquadramento legal à possibilidade de permanente governação em estado de excepção a pretexto de emergências sanitárias. Prevê-se que o estado de emergência passe a ser declarado por burocratas ou técnicos, sem controlo e vigilância democráticas dos órgãos de soberania, quando antes era necessária uma proposta do Presidente da República, uma autorização da Assembleia da República, consulta ao Governo, e tinha duração máxima de quinze dias. A possibilidade de decreto de estado de exceção constitucional servia até agora precisamente para que o Estado não pudesse reclamar poderes que extrapolassem o âmbito de um regime democrático.

De fininho, em junho de 2021, o Governo constituiu uma comissão técnica para mascarar a tramoia e, sem escrúpulos, arregimentou para o cambalacho da elaboração do anteprojeto da Lei de Emergência as entidades que deveriam fiscalizar as iniciativas legislativas (como a Provedoria de Justiça e a Procuradoria-geral da República). Esta nova lei de emergência sanitária para a qual se procura agora dar enquadramento constitucional, consegue, por exemplo, a proeza de justificar a prisão arbitrária de pessoas desde que esteja administrativamente regulada.

Para contornar a ilegalidade de todas as medidas políticas adoptadas com argumentário sanitário desde 2020, o PSD e o PS estão articulados para consagrar que possa ser o Governo a declarar uma emergência de saúde pública de modo unilateral, passando apenas por uma resolução do Conselho de Ministros. Isso permitiria adoptar, sob a capa de uma legalidade contrafeita, as medidas que mereceram total repúdio do Tribunal Constitucional como isolamentos, quarentenas, testagem generalizada e confinamentos preventivos baseados em conceitos vagos e falíveis de «risco», «necessidade» e «ameaça iminente» que radicariam em pareceres especulativos e preditivos de uma futura «Comissão Científica» a ser nomeada para o efeito pelo próprio Primeiro-Ministro. É um pouco como escolher o carrasco de um condenado à morte para seu advogado de defesa.

De uma assentada, a revisão constitucional que se quer fazer ilibará de responsabilidades políticas e até criminais os protagonistas de todas as decisões anteriores. Pior ainda: a Constituição deixa de ser uma defesa do cidadão perante os abusos do Estado e dos governos e passa a ser uma justificação para a sonegação dessa proteção legal de acordo com os estados de alma de quem está no poder.

Democracia e Liberdade são conceitos diferentes. Não são os políticos que garantem a Liberdade, nem são as leis que tornam uma sociedade livre. Apenas as nossas atitudes pessoais nos podem proteger das intromissões ilícitas do Estado que corrompem o espaço privado e violam direitos naturais.

Assim sendo, devemos apelar à consciência de cada um dos 230 deputados eleitos e exigir que se comportem como gente adulta decente e digna, recusando dar o seu voto a uma revisão constitucional perversa, furando a disciplina de voto dos seus partidos se necessário for.

Nota editorial: Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.