1. A esquerda segue. Mas… consegue? O ar parece subitamente tóxico. O abuso e a manipulação são pouco disfarçáveis. A metade que está fora de jogo da geringonça, começa a acordar, ainda que meio estremunhada, envolta numa espécie de desconfiança que nunca desapareceu totalmente. Vai e vem. Um difuso sentimento, entre o constrangimento e a incredulidade: nasceu com o parto da geringonça, instalou-se com o modus operandi de António Costa, entrou em semi-letargia, voltou mais forte na tragédia dos incêndios, depois na questão de Tancos, tornou a hibernar e agora ressuscitou, mesmo que só alguns estejam a dar por isso. A soma de, como dizer?, equívocos?, irresponsabilidades?, desfaçatez? começa também a ser indisfarçável: a Caixa Geral de Depósitos em primeiro lugar. Pior não se terá visto em quatro décadas.
Uma vertigem de dinheiro e desvergonha. A Caixa e o despudor acintoso com que se fala de milhões roubados, a implacabilidade com que somos chamados a pagá-los através de impostos calamitosos, a impunidade colocada como uma auréola à roda de certas cabeças. É certo que a responsabilidade de tão maus tratos pode – e deve – ser repartida por mais que uma família partidária. A culpa não. A culpa tem assinatura, data e registo e os socialistas sabem-no bem. E também sabem que responsabilidade e culpa não são o mesmo nem podem ser sancionadas como se fossem.
Depois, só para falar nos últimos dias, há o racismo brandido acusatoriamente como se os portugueses fossem todos racistas na acção e na intenção; a manipulação como modo de agir; o novo herói Mamadou, cuja causa (?) é obrigatório que nos comova e demova; a arrogância sem limite do mesmíssimo Mamadou, iludindo que o “motor” dos incidentes no Jamaica arrancou com um combustível chamado provocação e não negritude; um primeiro-ministro a entrar nesta perigosa polca, ao dizer e fazer o que António Costa fez e disse há dias no Parlamento; as Forças de Segurança tratadas em pé de igualdade com os encenadores da provocação; a integridade – humana, política, partidária, social, mediática – a deslassar como uma maionese mal feita. A autoridade a perder-se. (E a corrupção agora em folhetim: nos actuais capítulos, o Partido Comunista, surpreendentemente, é cabeça de cartaz.)
2. Não me admiraria que esta soma indecente de episódios fizesse um caminho: há cada vez menos voluntários a contemporizarem com este estado de coisas. A sombra do de um desalento cansado pesa sobre uma considerável parte do eleitorado que, com gelada indiferença, se vê excluído por não ser “dali”; pressente-se no ar algo de parecido com um princípio de recusa: a recusa física, firme, concreta, do uso e da prática do pensamento único, do sectarismo que impede uma cidadania livre, activa e interventiva a quem não mora na geringonça; do pactuar com alguns duvidosos comportamentos e expedientes políticos a que a esquerda recorre com admirável à vontade. Começam a escassear os figurantes dispostos a continuar a fazer de cegos, surdos e imbecis numa peça que não escreveram e os joviais espectadores de ontem ameaçam deixar a cena e a sala.
De tal forma isto me parece ser assim ou parecido com isto que justamente esta tomada de consciência por parte de um (ainda por contabilizar) eleitorado vai além das ficções do costume e é também isso que a distingue. E que, em certo sentido, torna essa consciencialização uma “novidade”. Não se trata já do país a “crescer” (sem sustentabilidade e estando nos últimos lugares do ranking da UE); da ficção de mais dinheiro no bolso ao fim do mês; dos portugueses tratados por igual quando a função pública é a filha eleita por entre importunos enteados; das cativações de um malabarista chamado Mário Centeno. Também já não é o estafadíssimo refrão da “culpa do anterior governo” sempre que algo na actual governação tropeça no errado, no injusto, no trafulha. Essa inventada “culpa” passou o prazo de validade, ninguém mais a ouve. Trata-se de que começou a haver a consciência da insuportabilidade de muita coisa.
O que quero significar com tudo isto? Nada de abrupto, nada de sensacional, não houve sequer uma viragem de cabo ou uma inversão de marcha. É apenas a percepção séria de que o peso da insuportabilidade pode tornar-se… pesado. Eis o que é novo.
3. Novos são também alguns portos de abrigo políticos. Incipentes, titubiantes, pouco conhecidos ou mesmo indesejados, o ponto – também novo – é que passaram a existir. Estão aí e têm a porta aberta para um mar de gente que carece de morada partidária. Ou porque se cansou ou desiludiu do que há, ou porque nasceu ontem e quer outra coisa. Seja como for, aquela piedosa consternação ouvida nos mentideros sobre o “pobre estado das direitas”, alimentada e ampliada pela media de serviço e os intriguistas da corte, deixou de fazer sentido: a “oferta” aumentou, a escolha de moradas partidárias também; e há outra geração política pronta a entrar em cena que não fará cerimónia com a esquerda, sorrirá com a vulgata das acusações disto ou daquilo, e quando muito terá pena dos acusadores. Quem poderá (ainda?) fazer caso ou levar a sério acusadores e donos que querem sê-lo de tudo: do regime, da democracia, do pensamento, da política, do dinheiro, da norma, da lei, dos credos, da cultura, dos costumes?
4. Tendo presente o fim da paisagem política tal como a conhecemos nas ultimas décadas e que ocorre um pouco por todo o lado, com o fim da organização partidária escorada nos partidos tradicionais, saberão as novas moradas actuais e futuras encaixar-se nesse ainda indefinido “modelo”? Traduzindo, organizando, corporizando ideologicamente o difuso desalento, a desconfiança, a recusa? Dando-lhes a seguir um corpo, um rumo, um propósito, objectivos? Serão capazes de levar a cabo um combate cultural em defesa da nossa matriz civilizacional, pelo menos tão crucial quanto a necessidade da reforma política? Capazes sobretudo de não se encostar aos extremos dando com isso à esquerda a prenda com que ela sonha e para a qual diariamente se esfalfa, que seria justamente extremar-se? Não se sabe. Espera-se.
Vasto, ambicioso programa, tremendo desafio.
A contagem já é decrescente. A direita – as direitas? – já não têm muito tempo para separar o trigo do joio, ocupar o espaço e tocar a reunir. Para “ser”. E depois, convencer.
5. Leva tempo sim. Mas esse tempo fará crescer as sementes já deitadas à terra da política.