“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: a nossa”
Nelson Rodrigues
Numa Carta Aberta ao Governo, a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros protesta contra o golpe de misericórdia dado à indústria do livro – editores, distribuidores, livreiros, autores, leitores: “Portugal baniu os livros do espaço público. Fecharam-se as livrarias. Retiraram-se os livros das prateleiras das estações de correios. Nos hipermercados, nos departamentos livreiros de espaços comerciais, nas papelarias e postos de gasolina, foram condenados à asfixia de um plástico e de fitas que os vedam ao público.”
A uma situação já catastrófica vieram juntar-se esta incompreensível proibição de venda não virtual de livros e a exiguidade dos “subsídios de compensação” atribuídos ao sector (cerca de 600 mil euros). Verba escandalosamente exígua, quando comparada com as atribuídas, por exemplo, à comunicação social. Ou com os 15 milhões de euros disponibilizados para “bens de primeira necessidade”, como a “campanha nacional anti-racista”, que em “estreita colaboração com associações anti-racistas” vai avançar nos media “com carácter de urgência”.
O mundo dos livros
Confesso que tenho aqui um parti pris. Sou bibliodependente: compro livros, leio livros, escrevo livros. Vivi sempre com livros à volta, desde miúdo que li para adormecer, às vezes com o candeeiro debaixo da roupa para pensarem que já estava a dormir. Lia na praia, lia no carro eléctrico, lia até nos jogos de futebol, quando entre os oito e os dez anos, um tio meu, fanático do Futebol Clube do Porto, me fez sócio e me levava aos domingos ao Estádio das Antas. E gosto do livro em papel, gosto de entrar em livrarias, de espiolhar bibliotecas, de vasculhar alfarrabistas.
Por isso tive, nestes dias, ainda mais um desgosto: o encerramento da Livraria Alfarrabista do Tarcísio Trindade, na rua do Alecrim. Eu e outros membros de uma raça em vias de extinção; a raça dos leitores e dos bibliófilos que, ao contrário de outras “minorias ameaçadas e discriminadas”, não tem sido propriamente “empoderada” pelo poder vigente. Nem consta que venha a ser.
Era bom entrar na Livraria Alfarrabista do Tarcísio Trindade e ir vendo nas prateleiras as novidades, as antiguidades, as pechinchas, enquanto o Tarcísio ficava lá ao fundo discretamente a ler. E, no fim, olhava para o monte das aquisições, dava sugestões e arredondava o preço – sempre por baixo.
Sou tudo menos saudosista mas confesso a minha nostalgia de um mundo de livros, um mundo em que me iniciei na adolescência, no fim dos anos cinquenta, princípio dos sessenta. Foi o Liceu D. Manuel II que me abriu definitivamente esse mundo, um liceu onde a maioria dos professores era de esquerda e onde ensinava História o Dr. Óscar Lopes, que era comunista. Era um senhor discreto, educado, burguesmente vestido, que não tinha ar de comer criancinhas ao pequeno-almoço. Também lá ensinava Português um homem admirável, o Dr. Baltazar Cardoso Valente, claramente da oposição. E nesse tempo de “ditadura fascista”, o compêndio de Literatura seguido no 6.º e 7.º ano era também feito por dois comunistas – António José Saraiva e Óscar Lopes. E era excelente. Quando comecei a ler romances, lia todos os escritores de esquerda que se editavam em Portugal, nas grandes editoras. Alguns bons, outros nem por isso. Sartre, Moravia, Vittorini, Erskine Caldwell, Amado, Veríssimo, toda essa literatura era editada e vendia-se; além da portuguesa, cujos principais escritores eram todos, ou quase todos, anti-regime. E alguns escreviam bem – o Aquilino, o Ferreira de Castro, vários neo-realistas.
Li-os a todos, a par dos clássicos portugueses, Eurico, o Presbítero, de Herculano, O Crime do Padre Amaro, do Eça, pecados de que me ia confessando ao pároco da freguesia da Lapa, padre Luís Rodrigues, que era um liberal, moderado nas penitências, e me justificava – “Tiveste de ler para o liceu, não foi?”. Sabíamos os dois que não era bem assim, mas assim ficava.
Este mundo dos livros era – e é – um mundo encantado. Acontece que, como em todos os mundos que valem a pena, a porta de entrada é mais estreita, sobretudo perante tudo o que nos é oferecido de bandeja e em cores garridas, como contas de vidro a “nativos”. E, infelizmente, começou a instalar-se em Portugal, há vinte ou trinta anos, um fenómeno que Michael Rostovtzeff, na História Económica e Social do Império Romano, já tinha identificado – a imitação, pelas classes dirigentes dos gostos e hábitos culturais das “plebes”. Não sei bem o que são “as plebes” agora mas sei que as chamadas elites não se diferenciam muito delas. E, lamentavelmente, não é só da classe política que falo. Vêem-se as letras gordas dos jornais, os noticiários, os debates televisivos, novelas, reality shows, às vezes séries, mas não se lêem livros, além do ocasional best-seller. E desconfia-se de quem lê ou leu.
Campanha de Alfabetização Virtual
Assim, a classe dirigente, a elite ilustrada que nos guia ou devia guiar, não só deixa à míngua editores, livreiros, autores, leitores e possíveis leitores (que devia incentivar ou pelo menos não hostilizar), como lança uma “campanha anti-racista” no valor de 15 milhões de euros, comprando “pacotes de publicidade institucional em órgãos de comunicação social”. Enfim, será outro tipo de alfabetização, uma alfabetização de emergência, uma alfabetização sem livros, a caminho desta distopia à portuguesa que vivemos.
Nada disso, diz-nos quem manda ou manobra quem manda, porque é de uma campanha crucial que se trata. E como reza a Resolução da Assembleia da República n.º 15/2021 e todos podemos observar, não só é crucial como é “urgente”. Olhando-se para o governo, para as profissões liberais, para o nosso empresariado, salta à vista que o grande problema nacional é o facto de o patriarcado branco dolicocéfalo dominar e monopolizar total e completamente a sociedade portuguesa. E nas ruas, os maus tratos, a segregação, a perseguição a quem é diferente na cor da pele transportam-nos diariamente até ao Alabama dos tempos de Jimmy Crow. Não restam dúvidas: temos de ser todos reeducados e urgentemente. E podemos estar tranquilos quanto à idoneidade e competência das associações escolhidas para nos alfabetizarem; bem como quanto à distribuição dos generosos espaços publicitários e das generosas verbas.
Os profetas da desgraça
“Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”: quem lesse saberia de cor estas palavra de Shelley. E este presente (e alguns passados e futuros) estava já escrito nos livros. A História e autores como Huxley, Orwell, Bradbury, em Brave New World, em 1984 ou em Fahrenheit 451, já nos tinham revelado que os caminhos utópicos que trilhamos vão quase sempre dar a distopias.
No Admirável Mundo Novo, de Huxley, as personagens têm os nomes dos profetas e agentes da grande utopia salvadora de então – Lenina Crowne, Polly Trotsky, e o protagonista insatisfeito, Bernard Marx. Também há um paparazzo chamado Darwin Bonaparte.
No livro, sob a égide de Ford e Freud, que substituíram o Deus cristão, as pessoas nascem de provetas em laboratórios, não envelhecem nem adoecem, vivem num Estado Mundial, sem nações, sem identidades, com duas castas definidas – Alfa e Beta – e outras indefinidas; mas senhores e escravos, todos libertos, vivem felizes, cumprindo, “de sua própria e livre vontade”, a função para que nasceram. É um Estado consumista e totalitário. As experiências totalitárias do “socialismo real” falharam no consumismo, porque não se coadunava então com a sua índole e porque não se produzia nada de jeito para consumir sob os regimes comunistas. Agora que o consumismo se juntou aos restos do comunismo estamos bem mais perto do admirável mundo novo de Huxley.
Como em quase todas as distopias, reais ou imaginadas, também no mundo perfeito de Huxley a eutanásia está instituída: na sociedade perfeita não pode haver velhos e, depois dos 60, quando o rejuvenescimento já não rejuvenesce, a sociedade mata os cidadãos incompatíveis com a perfeição. Ou são os próprios “de sua própria e livre vontade” que se submetem à morte. Morrem suavemente, em hospitais como The Park Lane Hospital for the Dying, um prédio cor-de-rosa de 60 andares. É ali, numa atmosfera de hotel de cinco estrelas, onde a televisão nunca para, que exercem o seu “direito à morte”. Assim, nada nem ninguém – nem Deus, nem a velhice, nem a doença, nem o sofrimento, nem os livros, nem qualquer espécie de reflexão crítica – perturbam a perfeição. É ali que Linda morre, num grande pavilhão garrido, com música de fundo e uma televisão aos pés da cama. Uma inspiração para as futuras clínicas privadas da eutanásia (uma “conquista democrática” que o nosso parlamento, “democraticamente” e no meio de uma pandemia, também já parece ter conquistado por nós e para nós).
Em 1984, George Orwell – um cruzamento de velho liberal inglês com um anarquista suave que não pactuou com o horror a que conduziu a utopia das boas intenções – tocou no outro ponto distópico dos nossos dias: o uso da comunicação social – um antigo símbolo do pensamento livre contra a tirania dos velhos dogmas, agora manipulado para legitimar e divulgar as novas formas de tirania e de alienação. O protagonista de Orwell, Winston Smith, é funcionário do Ministério da Verdade, que controla e alimenta a Telescreen com “pacotes de publicidade institucional”. A Telescreen funciona em toda a parte e a toda a hora, não é possível desligá-la e não só é vista como vê, qual super-câmara de vigilância ou ubíquo e eficaz armazenador e processador de dados.
A televisão ao serviço da propaganda, na forma estupidificante e aparentemente fútil e fortuita a que nos habituámos, também já está entre nós – quer na estirpe viral programas de “voyeurismo” (até há um que se chama Big Brother), quer na estirpe viral noticiários politicamente orientados.
A temperatura a que ardem os livros
Mas a amena temperatura sobe, e desta exaltação da televisão passámos à proibição dos livros. Estão, aliás, ligadas, no clássico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que insistiu muito que o seu livro não era “uma resposta ao senador Joseph McCarthy” nem era tanto sobre a “censura estatal”, como alguma imprensa quis então sugerir, mas mais sobre o modo como a televisão estava a destruir “o nosso interesse pela leitura e pela literatura” e a “transformar as pessoas em imbecis” (“It is about people being turned into morons by the TV”).
Assim, em Fahrenheit 451, queimam-se livros porque os livros são perigosos, porque levam a pensar e a julgar criticamente, através de um passado que pode denunciar, empalidecer ou pôr em causa o presente. E até sugerir outro futuro. Os que deixaram de ler livros – como a vaporosa Mildred, mulher do protagonista Montag – são espectadores passivos e obsessivos de televisão e de umas redes sociais tridimensionais avant la lettre que lhes fornecem famílias fictícias e lhes preenchem o dia-a-dia com companhias virtuais.
Ao olhar o mundo das redes sociais e ao ver alguns shows de alta popularidade, percebe-se que Bradbury penetrou incisivamente no coração do futuro – o nosso presente.
Quando o herói, Guy Montag, regressa a casa, ao seu bairro, a comunidade dos vizinhos, presa à realidade virtual, lembra-lhe um cemitério ou um mausoléu silencioso, imerso numa escuridão só quebrada pelos “fantasmas cinzentos” dos ecrãs que se projectam nas paredes.
Ray Bradbury era um autodidacta e um bibliófilo. Em Take Me Home, o texto autobiográfico publicado na New Yorker por ocasião da sua morte, descreve-se como um miúdo com uma enorme capacidade de se maravilhar. Em Waukegan, Illinois, sentado na relva de casa dos avós, o pequeno Ray repetia para quem o quisesse ouvir as histórias do Tarzan, de Harold Foster, e do John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs, histórias que decorava para que nunca se perdessem. Esse miúdo, perdido nas noites estivais da América profunda, maravilhado com as coisas e com os livros, acabaria por entrar para a lista dos maiores escritores de ficção científica do século XX, ao lado de Isaac Asimov, Arthur C. Clark, Robert A. Heinlein e Stanislaw Lem.
Fahrenheit 451 é uma saga num mundo distópico. Bradbury tem uma relação ambígua com o futuro, que o atrai e repele, que o seduz e assusta, e a história de Farenheit 451 situa-se nessa fronteira, algures entre os seus encantos – os livros, a natureza, a conversa, o silêncio, a América profunda, porta para outros mundos – e os seus temores – o mau uso das máquinas, a tirania da mudança pela mudança, o deslumbramento acrítico perante a inovação, o desprezo pelo passado, a manipulação.
A história é, como todas as grandes histórias, a história de uma viagem e de uma conversão. Guy Montag é bombeiro, um incinerador, um exterminador de livros que, às ordens do capitão Beatty, vai queimando livros e prendendo os seus possuidores como inimigos do Estado e do bem público. Tal como S. Paulo antes da conversão, Montag faz parte da máquina de repressão e perseguição, mas não é Cristo que lhe aparece na Estrada de Damasco: é uma jovem de 17 anos, Clarisse Maclellan, que o interpela sobre a sua profissão, que lhe pergunta porque queima livros, revelando-lhe que, antigamente, os bombeiros, em vez de queimarem o que quer que fosse, apagavam fogos. Uma noite, Montag lê Dover Beach, de Matthew Arnold, que retirara de uma queima e que guardava em segredo. Arnold lamenta a perda de verdade, de fé e de humanidade, numa Inglaterra em industrialização… E, a partir daí, torna-se um dissidente, um marginal.
E no mundo de Fahrenheit 451 a dissidência paga-se cara. Entre as sofisticadas tecnologias de perseguição e destruição está o tenebroso The Hound, um grande cão mecânico de oito patas que detecta e aniquila os dissidentes. Montag consegue escapar, mas a reportagem televisiva da perseguição, supostamente fidedigna e em tempo real, é forjada e manipulada para fins políticos, simulando a sua captura e apresentando-a como um sucesso do sistema e um castigo exemplar.
No final, na terra dos dissidentes, na terra dos livres homens-livro, cada um dos refugiados decora um livro e é esse livro; “vagabundos por fora e bibliotecas por dentro” que vagueiam pelos campos, fugindo e reagindo à destruição da história e da memória.
Não vamos ao ponto, nem eu nem os responsáveis da APEL, de imaginar o governo do Dr. António Costa a queimar livros e a obrigar-nos a decorar os clássicos que não se vendem nos espaços comerciais e poderão deixar de se editar em virtude da falência de editoras e livreiros; e menos ainda a soltar-nos um grande cão mecânico anti-dissidentes.
No pequeno mundo distópico em que vivemos a temperatura é outra: não queima, só asfixia; não mata, só mói e corrói. Aqui, morte antecipada, só a pedido, ou então por desgoverno, corrupção, falta de meios e de gestão de meios. E ainda que nas redes sociais e fora delas haja “cidadãos vigilantes” mais zelosos que cães mecânicos, prontos a denunciar e a perseguir quem sai da linha, nunca nada é tão trágico como nas distopias mais sérias. O que também não deixa de ser trágico.