É fácil divorciarmo-nos! Basta que embrulhemos em silêncio alguns ressentimentos. De seguida, juntarmos a isso todas as vezes em que, por um pequeno-nada, nos decepcionamos. Depois, repararmos que já nem vem à memória a última vez em que atribuímos admiração a um rasgo de brilho por um comportamento qualquer. Em cima disso, os desmazelozinhos que, não sendo exorbitantes, existem, e que trazem com eles um sentimento de descuido que faz com que a vida perca a sua graça. Mais a forma como nos tomam por seguros e, quase num ápice, estamos menos em primeiro lugar do que era indispensável para nos sentirmos vizinhos do enamoramento. E a maneira como deixa de se tornar certo ou seguro que, volta não volta, nos virão bater à porta para pedirem só mais outro bocadinho de açúcar. E a partilha, sem entusiasmo, de todos os: “como é que foi o dia?”. E a forma como se deixa de falar pelos cotovelos e quase se passa a falar com os cotovelos. Mais o tecido adiposo que se torna primeiro, uma atropelo; depois, uma pachorrice; e, finalmente, num indiferente companheiro (silencioso) de viagem. E a última vez em que o “até logo” foi dado de fugida e isso nem sequer nos magoou nem aborreceu.  E o olhar – límpido! – com que já não somos recebidos. E as rotinas e os impasses que se acumulam. E a sensação de que se evita conversar porque a convicção de que somos escutados partiu, de férias e, qual nómada digital, ficou pela última viagem romântica e, entretanto, não voltou. Mais a fadiga antes do amor. E o jeito como o erotismo deixou de ser urgente e se engripou. E a forma, entre o medroso e o mecânico, como nos tocam. E o jeito como compensamos tudo isso chorando, quando muito, mais vezes e mais de mansinho no cinema. E as irritaçãozinhas – que, até elas, se tornam esquivas – que fazem com que a  surpresa migre e fique só o “vai-se andando”. E os assuntos das crianças, as agendas das crianças, mais os melindres, os amuos e as trapalhadas da família. E as demais porcariazinhas que, todas juntas, nos fazem perguntar se estamos juntos, se estamos perto ou se não estaremos, simplesmente, sem estarmos. E sem termos bem a noção do que é isso de estar.

É fácil divorciarmo-nos! Muito mais do que casarmos. Mas, no meio disto tudo, há esta espécie  de divórcio grisalho que, como uma bruma, desce e nos remexe. Devagarinho! E nos remete para a resignação de já ser digno de ação de graças não se estar sozinho. Ter um amigo. O que faz com que, sem se dar conta, a vida encarquilhe e tudo, por causa disso, nos vá carcomindo. E, então, se esmoreça.

Não, não somos nós quem envelhece. É a forma como, assustadoramente, sem surpresa, o namoriscar se divorcia de nós. E, quase sem queixa, a isso diz-se que sim. E quase tudo se deixa.

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