No nosso querido Portugal é normal dar-se como ponto de partida para qualquer conversa sobre economia que não só a gestão nas empresas nacionais é pobre, feita por empresários velhos, barrigudos e de bigode, com a quarta classe mal feita, mas também que estes gerem doutorados em física quântica, sob regras laborais draconianas e pagando salários de miséria.
Já no Estado, a perspetiva não é bem essa. Acha-se que a gestão é algo que emana do dever público, sem hierarquias nem gestores incompetentes. E até poderá tal ser verdade, uma vez que o INE indicava em 2023 que para todos os escalões de formação o salário era mais elevado no sector público do que no privado, indo da diferença de 31% para licenciados, a apenas 3,3% “no topo da distribuição”.
O salário, por definição, é uma “Retribuição pecuniária regular por um serviço executado, geralmente definida por um contrato de trabalho”, ou uma “remuneração ajustada pela prestação de serviços”. Creio que quando se diz “ajustada” se pretender significar “apropriada” e que o dicionário não pretende incentivar que se estabeleçam leis ao gosto de casos particulares, como a de Hélder Rosalino para o cargo de secretário-geral do Governo.
Para os mais desatentos, que há muita gente desatenta nesta época de bolo-rei e sonhos (dos fritos, não dos irrealistas como ter o Estado a funcionar como se gostaria), esta quadra de Natal foi presenteada com uma autêntica história de encantar.
O presente de Natal foi tardio – foi apenas dia 26 de dezembro que num decreto-lei obscuro (como tantos, este sobre organização do Estado), se fez passar a permissão para contratar um elemento da administração do Banco de Portugal para o cargo de secretário-geral do Governo, mantendo a sua remuneração. Um presente de Natal atrasado para o futuro secretário-geral, entenda-se.
A discussão sobre salários é geralmente consensual: ganhamos pouco e trabalhamos arduamente, e os impostos sobre o rendimento do trabalho são altos. Contudo, quando discutimos valores específicos, o assunto ganha delicadeza. E o salário que o governo pretendia transportar rondava os quinze mil euros mensais, um crime em Portugal.
O Governo apressou-se a oficiosamente a explicar que aquele salário poderia ser pago pelo Banco de Portugal e assim se pouparia até um vencimento (o que só se explicaria assumindo a nulidade da função desempenhada atualmente pelo gestor), ou que a situação não era virgem, e que ocorre com regularidade a requisição de funcionários com a sua manutenção de condições. Chegou ainda a ser aventado que o Banco de Portugal responsabilizar-se pelo pagamento poderia gerar uma poupança para o contribuinte, como se não se estivéssemos a falar de diferentes bolsos do mesmo casaco.
Solícito, o Banco de Portugal publicou dia 28 um comunicado onde alertava para os potenciais custos públicos desta nomeação, uma vez que não fazia conta de manter o gestor na sua folha salarial.
Sábado. Entre o Natal e o fim de ano. Mas mesmo assim o Banco de Portugal conseguiu rapidamente empurrar a bomba para o campo do adversário. Sob a capa da impossibilidade estatutária de uma entidade pertencente ao Eurossistema aceitar manter o seu administrador, pagando-lhe o exercício de outras funções, o banco central deixou o gestor a meio de uma ponte em chamas.
Esta decisão foi criticada, e poderá ser útil ler a opinião de um especialista em contratação pública como João Bilhim, antigo presidente da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP), que considerou tal deliberação “um caso único de falta de cooperação”, que poderia fazer com que o gestor perdesse até o vínculo ao banco central, instituição que representa faz décadas.
Custa muito acreditar que um administrador de um banco central não falasse e combinasse com o governador desse mesmo banco os termos da sua ausência, pelo que suspeito que se trate apenas de mais um caso de “erro de perceção mútua”. O episódio conhecido como o do “Erro de perceção mútua” remonta a 2017 e disse respeito ao na altura Ministro das Finanças – agora Governador do Banco de Portugal – que mandatou um reputado gestor bancário (António Domingues) para recrutar uma equipa competente para gerir os destinos da Caixa Geral de Depósitos sob um conjunto de condições acordadas. Quando já em funções, a administração da CGD foi chamada a novas obrigações de divulgação pública de património tão absurdas e tão mais exigentes que as do Banco Central Europeu, que a equipa de gestão, alguma dela estrangeira, preferiu ir ganhar a sua vida noutras instituições financeiras. Na altura ficou um nítido odor a envio de cordeiro para o assador. Desta vez fica um forte odor a emboscada com engenhos pirotécnicos.
Curiosamente, o Presidente Executivo que se seguiu no cargo foi Paulo Macedo, um exemplo recorrente quando se mencionam casos de vencimentos elevados no Estado, pela sua passagem pelo Ministério das Finanças com o vencimento do Grupo BCP (entre 2004 e 2007). E mais uma prova da raridade que é o “gestor de excelência” em Portugal – ou não se compreenderiam tantas portas giratórias e tarefas em rotação.
Acabou-se todo o processo de imolação com a sensata decisão, tomada pelo visado, de se mostrar indisponível para assumir o cargo, o que em linguagem de rua quer dizer “indisponível para continuar a passar este tipo de enxovalhos”. Uma vez que foi necessária a contratação à pressa de um substituto para esta vaga de responsável pela modernização e consolidação de algumas secretarias-gerais, é fácil de explicar a escolha pela jovem promessa da política Costa Neves (70 anos) habituado a pressas, como a aplicada à assinatura do despacho que permitia a construção de um empreendimento turístico-imobiliário da empresa Portucale, que pertencia ao Grupo Espírito Santo, no ano de 2005, quando era ministro da agricultura, e dias antes das eleições.
Valeu a confusão pelo menos para se discutir o tema e relembrar que os políticos em geral têm os seus vencimentos, que são o que são e que não parecem estar em linha com a responsabilidade que lhes é investida, e para relembrar que os gestores públicos, gestores públicos em empresas em concorrência, e reguladores, têm estatutos de remuneração sem o mesmo escrutínio nem limites, levando ao facto delirante de o Governador do Banco de Portugal auferir um salário superior ao seu homólogo comparável nos Estados Unidos da América – e o que poderá explicar que o cargo de Governador seja tão apelativo, e até à última hora vá ser mais do que o de candidato a Presidente da República.
Como em qualquer discussão pouco ponderada, misturaram-se salários com as poupanças que a fusão de serviços do Estado poderiam gerar, as responsabilidades de pagamento, como se tal fosse sequer relevante para as contas do Estado e/ou do Banco de Portugal, e pelo caminho insultaram-se adversários chamando-os de demagógicos por estarem a discutir o tema proibido do vencimento dos políticos – mas como até o beatificado Poiares Maduro aproveitou no dia 5 de janeiro a sua preleção semanal no canal de televisão público para falar dos salários passados e presentes dos elementos de uma bancada parlamentar, criticando-os por terem melhorado a sua vida material ao incorrer na política, sinto-me bem isentado das obrigações de cuidado a abordar este tema sem que tenha de me sentir um retinto demagogo.
Do episódio, ficam alguns duros ensinamentos. O Estado não tem capacidade para competir com as empresas (nem com os reguladores ironicamente) no recrutamento dos seus quadros. O recrutamento dos quadros do Estado é feito sem qualquer análise de custo-benefício, ou de racionalidade apresentável das decisões. Continua sem haver disponibilidade para indexar ou relacionar o desempenho ao vencimento – este cargo era o ideal porque o montante de poupança da consolidação de secretarias-gerais poderia ser limpidamente calculado e assim ficaria explicado e justificando o alto salário. Os quadros do Estado são descartáveis e não há cobertura política para lhes ser pago um salário elevado, quanto mais para a tomada de decisões verdadeiramente difíceis. E talvez por último, como na fábula, nunca confiar no escorpião, porque a sua natureza não muda.
Parece ser do mais banal senso que cada salário deve estar relacionado com o benefício com que cada trabalhador contribui, mas no sector público nem essa análise é feita nem se deseja que seja feita. E deveríamos tentar perceber o porquê.