Nos anos 90, um ministro da cultura francês e socialista publicou com grande estrondo uma lei do preço fixo do livro. Uma coisa bem à francesa: decidiu que defendia o sector editorial e livreiro, interferindo directamente através do Estado no mercado livreiro. Proibidos saldos, ajustes de preços, campanhas de promoção. Preço fixo durante 18 meses após a publicação.
Não contente com esta decisão no seu país, o ministro francês tentou exportar essas brilhantes ideias para o resto da Europa e impor directivas que obrigam editores e livreiros a manter o preço fixo do livro durante um ano e meio após a publicação ou importação da obra, sob pena de multa ou coimas, mesmo que os descontos do livro sejam, por exemplo, feitos em cartão do comerciante (cartão FNAC, Bertrand, ou nos pacotes do pague 2 leve 3).
Claro que na Europa a coisa não teve grande sucesso, excepto nos países de governos socialistas. A Alemanha e os nórdicos não aderiram, pois estes países estão habituados a acordos voluntários entre editores e livreiros que definem as regras que consideram adequadas ao mercado. Acordos feitos pelos intervenientes e não impostas pelo Estado.
Os ingleses (ex-UE) tiveram sempre, como os americanos, o preço impresso na capa dos livros. É o preço indicativo, sobre o qual os livreiros ou os editores podem fazer os descontos que entenderem sem serem multados pelas inspeções culturais.
Têm, porém, algo muito importante para a defesa dos editores, dos livreiros e, sobretudo, dos leitores: a Lei da Concorrência. Um caso tornou-se famoso no meio editorial americano: o editor forneceu um livro a preços diferentes a uma pequena livraria nova-iorquina e a um gigante dos livros e, após ida a tribunal, teve de indemnizar a livraria em alguns milhões de dólares.
Afinal, o preço de venda ao público leitor é indiferente, dependendo de cada um decidir a sua margem de lucro. O PVP está escrito no livro, ou seja, o máximo preço atribuído pelo editor e pelo qual aconselha a ser vendido. A loja estabelece quanto tempo mantém esse preço e decide o momento em que faz saldos com esse título, ou a ocasião em que livro e autor entram numa campanha de vendas do dia do Pai ou da Mãe. Cada livreiro ou editor, ou em conjunto, decidem o que fazer para melhor rentabilizar o livro e para satisfação do autor que decidiu publicá-lo. Negoceiam e decidem livremente.
Claro que, em Portugal, constitucionalmente a caminho do socialismo, Manuel Maria Carrilho apressou-se a traduzir a lei Lang para português e a integrá-la na nossa ordem jurídica: 18 meses de preço fixo após a saída do livro.
A atual ministra da Cultura, Graça Fonseca, resolveu, nesta fase dramática da vida dos livros em papel, proibir a venda nas lojas que estavam abertas durante o confinamento iniciado em Janeiro deste ano, incluindo livrarias como as FNAC ou nos hipermercados e supermercados. Um desastre para os editores e para todos os que trabalham na edição. Uma calamidade para os autores.
Não contente com esta medida a que o Presidente da República, que foi editor, pôs termo a pedido de numerosos editores, Graça Fonseca vem agora com um decreto-lei alargar o período de vida do preço fixo do livro de 18 para 24 meses. Ou seja, durante dois anos, um livro que não vende, um livro de momento, um livro que regressou ao armazém três ou quatro meses depois da sua publicação, não pode ser vendido em saldo, não pode baixar o preço mesmo que o editor e os livreiros estejam de acordo com essa descida. Tem de ficar no armazém, com todos os custos inerentes à acumulação de stocks, para dois anos depois se poder baixar então o seu preço e entrar livremente nas regras do mercado.
Lembro um exemplo recente e muito comum: um editor percebe que tem um livro que está que na origem de uma série da Netflix ou da HBO e coloca-o no mercado. Três meses depois, já ninguém vê a série e os livreiros devolvem o livro ao editor que vai ficar com ele em armazém e vendê-lo nas feiras do livro dois anos depois. Durante dois anos nem o editor nem o livreiro podem baixar o preço de um livro que têm em stock, mesmo que esse livro já não esteja na lista dos vendidos. Só pode baixá-lo se comunicar às actividades culturais e todos os que tenham algum exemplar para venda receberem a respectiva documentação e forem mudar as etiquetas do livro e o preço no seu sistema de contabilidade.
Sabe-se que um livro tem presentemente um período de vida de três a quatro meses e que as devoluções dos livreiros aos editores estavam, antes da pandemia, próximas dos 60 por cento! Sessenta por cento dos livros vendidos a firme com direito de devolução.
Isto é: numa tiragem de 1000 exemplares, quase 600 voltam ao armazém do editor logo três ou quatro meses após a sua publicação e aí têm de ficar até poderem entrar em saldo .
Este ano, com a pandemia e a proibição de vender livros durante os primeiros meses do ano, os números das devoluções vão aumentar ainda mais, sendo que alguns livros nem sequer chegaram às prateleiras.
Dir-se-á: mas para que serve então esta lei e porque suscita tanto entusiasmo em ideólogos socialistas que se acham proprietários da cultura e das gentes das artes e da escrita?
Esta medida é tomada para, dizem, salvar as livrarias.
No entanto, já passou tempo suficiente para se perceber que as livrarias em Portugal não foram salvas e vivem tristes dias, tal como os editores não escolares. Todos temos na memória de livrarias e livreiros que ou já fecharam, ou estão a atravessar dias difíceis por outras razões conhecidas e estudadas e que nada têm a ver com o livro ter ou não ter preço fixo.
As livrarias fecharam tanto em Washington, em Londres, como em Paris. Quando não fecharam, diversificaram as vendas e comercializam informática, brinquedos, ou eletrodomésticos e reduziram a oferta de livros.
Se alguém tiver dúvidas, basta olhar para as pessoas no metro, ou nos comboios, para se perceber que ninguém lê livros, ou jornais, ou revistas em papel. Todos têm um telemóvel ou um tablet com que jogam ou leem.
Lê-se muito mais e muito mais horas, mas muito menos livros em papel. A venda de livros em papel deslocou-se das livrarias para o on-line, para as Amazones, as Wooks ou para o site dos editores e, evidentemente, os sites das livrarias.
Numa reunião com representantes dos profissionais do sector do livro, o responsável político do Ministério da Economia afirmou, durante a pandemia, que era preciso salvaguardar os interesses das muitas livrarias existentes em Portugal e ele sabia que eram muitas, porque tinha ido ver números desse CAE. Chamar livraria a todos os que, e ainda bem, têm esse CAE faz incluir papelarias, bombas de gasolina, secretarias de escolas, etc.
Escrevo isto com algum receio pois recordo por exemplo o ar de lesa-majestade de Inês Pedrosa quando se falava em vender livros em supermercados. Receio que ainda se vão lembrar de proibir a venda dos livros em locais que consideram inapropriados e o Estado além de decidir o preço fixo ainda se arrogue o direito de deliberar onde se podem vender.
É uma realidade que o mercado do livro em papel encolheu. Claro que sim. Há uns anos quando editei, na Bertrand, o “Código Da Vinci”, vendemos num ano 750 mil exemplares. Antes da pandemia, o livro mais vendido em livraria nesse ano (descontando o online e o e-book) registou pouco mais de 30 mil exemplares.
Em muitos países, o livro em papel foi substituído pelo e-book e os livros são lidos muito mais em Kindle ou em Kobo, facilitando a leitura, particularmente dos idosos e dos viajantes. Isso defende os editores e muito particularmente os autores. Em Portugal tal não se verifica.
O editor não pode apostar num escritor jovem e desconhecido, por muito bom que seja, nem num ensaio académico importante, mas não comercial, e muito menos editar poesia, sem correr um risco demasiado grande.
Mas mesmo a diversidade cultural que se deseja nunca existirá e ficará mais pobre, se não forem os editores, os livreiros e os autores a encontrar os caminhos que permitam a real sobrevivência do sector.
Tive na editora Quetzal um sócio, Rogério Petinga, grande homem dos livros que faleceu recentemente, que dizia a rir, com o humor que o caracterizava, que “ter uma editora em Portugal é como ter um talho de carne de porco na Arábia Saudita”!
Cada vez lhe dou mais razão. Sobretudo quanto mais o Estado se impuser com normas e legislação que impedem o sector de encontrar saídas para os seus problemas, querendo de forma autoritária e abusiva impor soluções artificiais que nada trouxeram de bom ao sector nos últimos anos.
No antigo regime Portugal viveu o condicionamento industrial e por isso a Coca-cola era proibida não por ser a “a água chilra do imperialismo”, mas para proteger a Canada Dry e a Sumol. Agora temos o condicionamento comercial. Os resultados não diferem muito.