Proponho-me a avançar com uma série de artigos onde tento analisar alguns dos argumentos do conflito israelo-palestiniano separadamente. Se neste artigo não falar em detalhe da Nakba, do estatuto de Jerusalém, da resolução 242 e tantos outros temas extraordinariamente relevantes, não se apoquente. Não estou a desvalorizá-los nem a ignorá-los, apenas a procurar isolar ideias evitando tangentes desnecessárias.

Do Rio até ao Mar. Os estudantes das universidades americanas cantam-no em vez de irem às aulas, e exibem esta frase orgulhosamente em t-shirts e placards. Embora muitos não pareçam saber sequer qual o rio e qual o mar, entendem bem o significado do que estão a defender: na sua opinião, aquela terra deve entregue aos palestinianos, e os judeus colonialistas devem simplesmente “desaparecer”.

Alguns em Portugal, como o Ricardo Esteves Ribeiro do popular podcast “Só Fumaça”, ainda nos esclarecem que isso deve ser feito por quaisquer meios, afirmações essas feitas imediatamente a seguir ao ataque de 7 de outubro, onde o Hamas se dedicou a massacrar, violar e raptar israelitas. E pergunta ainda “As pessoas que acham que não se deve usar terror, violência, armas, o que quer que lhe queiram chamar, para resistir à ocupação colonial, que métodos acham legítimos para resistir (…)?”. Ribeiro não está certamente sozinho nessa luta pela legitimação da violação, homicídio de prisioneiros, tortura e ataques indiscriminados a civis.

Podemos encontrar a mesma ideia na carta do Hamas, assim como nos discursos de personagens como Nasrallah e Khamenei.

Na última versão da Carta do Hamas (2017) encontramos um texto marginalmente menos violento do que a sua carta original (1988). Advoga a criação do Estado da Palestina a partir das fronteiras de 1967, assumindo implicitamente a aceitação da existência do Estado de Israel, mas não consegue manter a consistência dessa ideia ao longo do documento, exigindo “a completa libertação da Palestina, do rio até ao mar”. Não obstante os óbvios avanços no sentido de uma maior moderação em relação à carta original (que era assumidamente anti-semita e incapaz de qualquer aproximação) esta contradição insanável entre a partição usando as fronteiras de 1967 e a solução “do rio até ao mar” demonstram que esta organização – mesmo nos seus fundamentos mais utópicos – está ainda longe de poder ser um parceiro para a paz. A sua actuação no terreno (e não me refiro apenas ao massacre de 7 de outubro) não deixa qualquer dúvida.

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Hassan Nasrallah, líder do grupo terrorista Hezbollah do Líbano, discursando em janeiro deste ano a partir de Beirute, acompanha a mesma ideia e com a mesma violência do nosso podcaster doméstico.

“If you want to feel secure, you have an American passport, go back to the United States. You have a British passport, go back to the U.K. Here, you don’t have a future, and, from the river to the sea, the land of Palestine is for the Palestinian people and for the Palestinian people only” 

Também o líder supremo do Irão, Khamenei falando em maio, recupera a mesma expressão:

“Now God’s first promise about the Palestinian people has been fulfilled, and that is the victory of the people of Gaza, who are a small group, against the big, powerful group [consisting of] the US, NATO, England and a number of other countries. Accordingly, the second promise, which is the elimination of the Zionist regime, can also be realized. With God’s grace, the day will come when Palestine will be established ‘from the river to the sea.’”

Todavia, como tantas vezes acontece nas estórias que rodeiam este conflito, o mesmíssimo argumento pode ser encontrado do lado de Israel. Personagens tão importantes como a deputada do Knesset, Galit Distel Atbaryan, ministra da Informação de Netanyahu entre 2022 e 2023, apelou efectivamente ao genocídio e à crueldade sobre os civis de Gaza através do Twitter com as seguintes palavras:

“(…) Invest this energy in one thing:

Erasing all of Gaza from the face of the Earth.

That the Gazan monsters will fly to the southern fence and try to enter Egyptian territory.

Or they will die.

And their death is evil.

Gaza should be erased.

And fire and smoke on the heads of the nazis in Judea and Samaria.

(…)

A vengeful and cruel IDF is needed here.

Anything less is immoral.

Just unethical”

Estas palavras, escritas na sequência de 7 de Outubro, para além dos apelos directos à total destruição de Gaza, do desejo de empurrar os seus habitantes para o Egipto sob ameaça de morte, alarga o escopo da sua fúria homicida para a “Judeia e Samaria” (o nome que alguns israelitas e seus aliados mais fanáticos dão à Cisjordânia e que nega a existência deste território palestiniano e os direitos das população que lá reside desde tempos imemoriais), a prova clara que este desejo de destruição e morte é absolutamente independente do Hamas (cujo poder político na Cisjordânia é negligenciável). Se a questão fosse apenas o Hamas, não existiria motivo algum para promover violência contra um território não controlado pelo Hamas. Se o fazem e se o defendem, não há outra conclusão possível senão a de que os crimes do Hamas são usados como uma justificação para se poder avançar uma agenda “do rio até ao mar” absolutamente simétrica por parte de segmentos consideráveis do governo e sociedade israelita.

Naturalmente que isto poderiam ser as palavras de uma deputada mais transtornada, desalinhada com o seu partido e governo, e não representativa do seu povo. Mas nem o tweet foi retirado (pode ainda ser lido no original), nem a deputada expulsa do partido, ou obrigada a retratar-se.

É aliás esclarecedor, que quando o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu discursava nas Nações Unidas em Nova Iorque (2023), mostrou um mapa onde Israel ocupava todo o território “do rio até ao mar”. Não deveríamos estranhar já que o seu partido Likud criado por Menachem Begin e Ariel Sharon tem, na sua carta de 1977 uma formulação muito parecida com a do Hamas: “The right of the Jewish people to the land of Israel is eternal and indisputable… therefore, Judea and Samaria will not be handed to any foreign administration; between the Sea and the Jordan there will only be Israeli sovereignty.”

A sua carta revista de 1999 acrescenta ainda o direito à criação de colonatos na Cisjordânia: “The Jewish communities in Judea, Samaria, and Gaza are the realization of Zionist values. Settlement of the land is a clear expression of the unassailable right of the Jewish people to the Land of Israel and constitutes an important asset in the defense of the vital interests of the State of Israel. The Likud will continue to strengthen and develop these communities and will prevent their uprooting.”

No todo-poderoso congresso americano, estas ideias encontram também algum eco. O congressista Max Miller, que trabalhou com Donald Trump na Casa Branca, é perfeitamente claro na sua defesa de uma guerra sem quartel afirmando que Gaza deve ser transformada num parque de estacionamento e exigiu que a administração Biden ”get out of Israel’s way and to let Israel do what it needs to do best” e que não deveriam existir quaisquer rules of engagement para o bombardeamento de Gaza. Um perfeito espelho da opinião do líder do Hezbollah que segundo a Al Jazeera: “Nasrallah said there would be “no ceilings” and “no rules” to Hezbollah’s fighting if Israel launched full war on Lebanon.”

Mas provavelmente ninguém no lado pró-israelita superará David Azoulay, líder do concelho de Metula (na fronteira com o Líbano), que consegue a proeza de apelar a que Israel faça Gaza parecer Auschwitz depois de enviar à força todos os seus habitantes para campos de refugiados no Líbano. As declarações horrorizaram os responsáveis pelo museu de Auschwitz, cujas palavras eu subscrevo em absoluto: “Memory of victims of Auschwitz has, at times, been violated and instrumentalized in various extreme statements. David Azoulai appears to wish to use the symbol of the largest cemetery in the world as some sort of a sick, hateful, pseudo-artistic, symbolic expression. Calling for acts that seem to transgress any civil, wartime, moral, and human laws, that may sound as a call for murder of the scale akin to Auschwitz, puts the whole honest world face-to-face with a madness that must be confronted and firmly rejected. We do hope that Israeli authorities will react to such shameful abuse, as terrorism can never be a response to terrorism.”

Devemos ser claros na condenação do tipo de argumentos que usualmente acompanha a expressão “do rio até ao mar”. Quem defende a criação de uma Palestina “do rio até ao mar” está efectivamente a promover e defender o genocídio ou a limpeza étnica. Quem defende Eretz Israel (o alargamento das fronteiras de Israel para limpar e anexar Cisjordânia, Gaza, Sinai, assim como vários territórios do Líbano, Jordânia e Síria) em nada se distingue daqueles que tanto odeia.

Em teoria, é possível imaginar uma solução em que este território “do rio até ao mar” (que poder-se-ia chamar Israel, Palestina, Terra Santa, ou qualquer outro nome) se tornasse numa democracia secular onde todos os seus habitantes, independentemente da sua religião e etnia fossem tratados como iguais. Na prática, entre centenas ou milhares de israelitas e palestinianos que conheci nestas décadas pela região, só vi esta ideia defendida por um par de palestinianos. Não consigo imaginar que no próximo século as relações entre judeus, muçulmanos e cristãos desta região tenham chegado a um ponto onde uma solução deste tipo possa ser levada a sério. É simplesmente utópica.

A expressão “do rio até ao mar” devia ser considerada uma bandeira vermelha para qualquer pessoa que acredita na dignidade de todos os indivíduos. Não passa de uma forma poética de promoção do genocídio e/ou de limpeza étnica, algo que nenhum humanista deveria sequer considerar. Como afirmou Mosab Hassan Yousef, filho de um dos fundadores do Hamas, e cujo livro Son of Hamas é um tenebroso testemunho do conflito, com o seu habitual estilo directo e brutal “’From de River to the Sea’ is a genocide call against Israel so please don’t sugar coat it!”.

Quem defende uma vitória absoluta de um dos lados está efectivamente a colocar-se ao lado dos grandes genocidas do passado, algo que o mundo certamente não necessita e não tem saudades.

Felizmente ainda há muitos em ambos os lados da muralha que não se deixam encantar pelos instintos mais primários e cuja visão é um raio de esperança para todos os que desejam realmente a paz e não o extermínio mútuo. Entre estes está Yuval Noah Harari, israelita e autor do best seller Sapiens, a brief history of mankind:

“The horrendous conflict between Israeli Jews and Palestinian Arabs is fuelled by the unwillingness to recognize the right of the other side to exist. Each side believes that securing justice for itself demands the disappearance of the other. To achieve peace, everyone should acknowledge the shared humanity of Jews and Palestinians, their suffering, pain, and the equal right of Palestinians and Jews to enjoy secure, respectful, and prosperous lives in the country of their birth, the land between the mediterranean sea and the Jordan river.”

Do rio até ao mar. Do mar até ao rio. Dois povos que, ou aprendem a tolerar-se mutuamente ou ficarão condenados aos horrores da guerra eterna.