Há muito que os deuses abandonaram o Olimpo sem que ninguém os tenha substituído. Porém, novos salvadores apareceram. Residem agora noutra morada, Olisipo, de seu nome. E na sua sobrenatural clarividência, desprovidos de quaisquer complexos, demonstram diariamente aos portugueses a sua extraordinariedade.
Poderão estar a indagar de onde provém esta fenomenal qualidade? Da ausência do erro. Assim, como o erro é revelador do humano, a inexistência dessa lacuna é denunciadora do ultranatural. É por isso que a observância de determinados articulados jurídicos – como o Código de Conduta dos Trabalhadores da Autoridade Tributária e Aduaneira ou o Código do Procedimento Administrativo e todos aqueles que se referirem a responsabilidade dos titulares de cargos públicos – não lhes são aplicáveis. Daí que as oferendas dos mortais (lembram-se das viagens da Galp?) sejam perfeitamente normais. Para além disso, não sendo estas dádivas extraordinárias, são integralmente irrelevantes para qualquer conflito de interesses. Mas não fiquem em cuidado. Perturbados com a constatação da normalidade, os novos salvadores elaboraram um código de conduta deveras extraordinário e exclusivamente adequado ao seu comportamento sobre-humano. Porquê? Porque a lei só obriga os mortais. Ou seja, observar a lei é normal. Já a inimputabilidade é que é ímpar. Ou aparenta ser.
Esta extraordinariedade não possui apenas um cariz geral e abstracto. Também é possível aplicá-la em contextos específicos, intangíveis e tangíveis. Para ilustrar esta afirmação não há melhor exemplo do que o do Primeiro dos novos salvadores, António Costa, o qual, convicto do seu destino, persiste no autoproclamar das suas virtudes e glória. Que não hajam dúvidas nesse sentido. Tanto a sua acção como a sua retórica são extramundanas. Ora vejamos.
Em 2016, com uma pompa e circunstância inaudita, António Costa disse que o clima do Verão não era um factor a ter em conta porque “não é por haver vento ou calor que há incêndios”. Apesar da irrelevância destes factores, o Primeiro dos novos salvadores também defendeu uma floresta mais resistente e sustentável, i.e., uma reforma e reestruturação das florestas (provavelmente através de inovações biotecnológicas que estariam para além da nossa compreensão).
Em 2017, tudo correu mal. 107 mortos nos incêndios! Porquê? Porque apesar dos relatos da descoordenação generalizada os pressupostos de resposta não foram alterados. Todavia, António Costa já não responsabilizava apenas o comportamento humano. Os demónios eram agora o clima, que se manifestou numa escala até então desconhecida (tinha de ser extraordinária!), a GNR, a protecção civil, etc. Enfim, tudo e todos, menos qualquer um dos governantes extraordinários.
Em 2018, naquilo que só pode ser uma actualização dos métodos de outrora (diz-se que os deuses do Olimpo manipulavam os mortais através da mente e da vontade), o Primeiro dos novos salvadores twittou-se a controlar os trabalhos da frente de combate ao fogo através de um painel onde, pela ponta dos dedos, expressava a sua vontade. Simultaneamente, ou quase, exemplificando a plenitude da sua extraordinariedade, deu uma entrevista aos órgãos de comunicação social. A indumentária e o marcador de cronos (Hermès) utilizados provam-no. E claro, apesar de estarmos a ter um Verão atípico, no incêndio de Monchique as temperaturas foram excepcionais.
Fazer a mesma coisa ininterruptamente esperando resultados diferentes é a definição de insanidade. António Costa persiste na mesma metodologia há anos e continua à espera de resultados distintos. Fá-lo desde a famosa reforma da Protecção Civil (2006), cujo pináculo de eficiência pode ser demonstrado pelo SIRESP e pelos Kamov, que, por razões incompreensíveis, considera como a joia da coroa da sua veia reformista. Se este comportamento não é extraordinário, então desconheço o que o seja.
Esta postura é reveladora de teimosia e de falta de humildade. Falou-se de luto nacional. Acho muito bem. Falou-se de honrar as vítimas. Ainda melhor. Já a manutenção dos pressupostos é inaceitável. Voltar a defender um modelo que não funciona é indesculpável. Ainda bem que este ano não houve mortes. Mas para verdadeiramente honrar as vítimas dos incêndios anteriores é urgente reflectir, reconhecer os erros e ter humildade para os corrigir. Isso é que seria extraordinário!
Contudo, conforme conselho do Primeiro dos novos salvadores, é melhor tirarmos o cavalinho da chuva. Há coisas que não mudam. Este ano foi criado o Observatório do Pinhal do Rei. Tudo indica que para o ano, após as chamas que irão fustigar novamente o nosso país, quiçá no Gerês – oxalá assim não aconteça – será criado o Observatório da Serra de Monchique. E também em 2019, tal como ouvimos agora, será afirmado que as declarações de António Costa foram deturpadas e descontextualizadas. Não duvidem. Trata-se da 2ª norma do guião da gestão comunicativa destes governantes: “Jamais reconheças”.
P.S. Portugal não necessita de políticos perfeitos. Portugal precisa de políticos responsáveis e responsabilizáveis. Em situações mais ou menos análogas, a Leonor Beleza e o Jorge Coelho assumiram as responsabilidades políticas e demitiram-se. Que fez ou fará António Costa?
Politólogo, Professor convidado EEG/UMinho