O momento que estamos a viver é um desses em que o quadro de valores em que assenta a vida da comunidade é reescrito em resultado da força dos novos senhores. São mudanças gravitacionais de centros de poder que podem acontecer ao nível da família, do bairro, do país ou da empresa. E que, por vezes, acontecem mesmo numa escala planetária. Este é, de facto, um momento desses.

Estas são sempre mudanças inevitavelmente traumáticas. Como não relembrar o que o mundo sofreu há oito séculos com a invasão dos mongóis, uma horda conquistadora, selvagem e sanguinária, que ultrapassou em violência tudo o que era praticado e conhecido na altura. Através dos exércitos invasores, os povos foram caindo uns atrás das outras sob a serventia mongol. E quando já tinham os pés solidamente assentes no terreno – e apesar de tudo o que tinha ocorrido – os invasores passaram miraculosamente a merecer o respeito das autoridades locais. Como se sabe, o império mongol acabou por desabar, algo inesperadamente, como um castelo de cartas, deixando, no entanto, heranças duradouras como foi uma nova China e o nascimento de Moscovo. Quanto à Europa, depois de tratar das feridas, voltou a ser o que era, numa permanente guerra civil.

Passar de inimigo a amado não só é possível como às vezes acontece quando ocorre a alteração da relação de poder. Que os mongóis eram horríveis para os povos conquistados, não havia dúvida nenhuma. O seu desprezo pelas mais elementares regras de convivência ou de civilidade era gritante. Chocante é, também, pensar que, quando explicavam as novas regras do jogo nas reuniões com os poderes locais, os mongóis faziam as suas necessidades mesmo à frente dos dignatários e sem quaisquer pruridos. Não creio que haja registo de manifestação de desagrado por parte dos vencidos…

O comportamento humano face aos novos senhores raramente dá lugar ao aparecimento de heróis. Após os resultados eleitorais nos EUA, com o anúncio desta nova ordem revolucionária e transformacional, o ajuste no discursos foi inevitável: umas horas depois de conhecido o desfecho, Ursula von der Leyen, símbolo da luta contra as alterações climáticas provocadas pelos combustíveis fósseis, ofereceu a Trump a perspectiva da aquisição de mais gás natural americano pela Europa, enquanto o próprio Zelensky – que lidera uma já longa e heróica luta pela sobrevivência do seu país – não perdeu mais de um dia para ter uma valiosa conversa telefónica com Trump e com Musk, simpatizantes da necessidade da derrota da Ucrânia.

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Nesta altura, dada a natureza instável e imprevisível de Trump, não é fácil antecipar como vai evoluir o nosso futuro global, que ninguém duvida ir ser profundamente marcado por esta nova administração americana. Mas, para a Europa, os sinais não são animadores. E os que festejam a vitória de Trump, que tenham cautela pois os efeitos serão sentidos por todos independentemente do seu alinhamento ideológico.

O que sabemos já é que a maior potência económica e militar do mundo vai ser dirigida por alguém que não pratica os princípios de civilidade que fazem parte da nossa cultura. Alguém que despreza o valor do conhecimento, da ciência e da convivência democrática, patrimónios fundacionais da nossa civilização ocidental. Alguém que, tendo responsabilidade pela segurança do seu gigantesco país e, em grande medida, pela do mundo, insulta e divide os aliados enquanto corteja os inimigos e os incita a atacar aqueles. Alguém que, sob um sistema legal semelhante ao que rege a vida dos cidadãos ocidentais, foi condenado por crimes que cometeu, numa decisão confirmada, por unanimidade, por doze jurados independentes que, como é de regra, foram seleccionados aleatoriamente entre a população anónima. Alguém que comandou o ataque de uma multidão enfurecida à sede do poder democrático americano por não aceitar ter perdido a eleição para Presidente. Alguém que, apesar da reputação de grande gestor que os meios de comunicação lhe vêm atribuindo ao longo dos anos, fracassou repetida e fragorosamente nos projectos de investimento que originou, deixando perdas colossais para os Bancos financiadores e para os milhares de fornecedores que se entusiasmaram em participar nas suas aventuras. Não é segredo que, quando se candidata à presidência, Trump não tinha nenhum Banco americano disposto a financiar as suas actividades como também não é segredo que para as suas últimas operações imobiliárias obteve financiamentos privados de origem estrangeira desconhecida.

De facto, e de acordo com o modelo de valores ocidentais, a lista de razões pelas quais Trump está desqualificado para exercer funções de serviço público são tão numerosas que seria fastidioso enumerar. Como numerosos e aterradores são os testemunhos de quem com ele trabalhou na primeira Presidência. No entanto, apesar de tudo isso ser conhecido, Trump, que soube escolher os temas que tocam nas pessoas, foi escolhido pelos seus para ser o chefe indiscutível, um líder ungido com todos os poderes. E a quem foi dada a missão de salvar o país que estaria em risco de soçobrar, o que, aliás, está em perfeita contradição com a invejosa situação económica em que os EUA se encontram. Este é um chefe que não suporta nem aceita críticas, negação básica do comportamento que explica o sucesso da civilização ocidental. Um chefe que teve o voto dos latinos que prometeu expulsar, o voto dos seniores que vão perder protecção social e a subsidiação dos custos de saúde, o voto das mulheres que vão perder direitos e os votos dos pobres que querem cortar os impostos dos multimilionários.

Como por vezes se diz, há certos perus que gostam mesmo muito do Natal. Acontece na América e, pelo que se vê, também na Europa, e Portugal não é excepção. As manifestações fora dos EUA de entusiasmo e adesão pela vitória de Trump são difíceis de entender. O desprezo que Trump manifesta pelos africanos e porto-riquenhos, aplica-se inevitavelmente aos cidadãos da maioria dos países no mundo e com certeza a este nosso pequeno e pobre país. O drama para a Europa é não se ter preocupado com a possibilidade de isto vir a acontecer tendo agora de enfrentar uma América egoísta, fechada ao comércio internacional e indiferente à segurança dos outros, aliados ou não. A humilhação para a Europa, com a chegada dos novos mongóis a Bruxelas, será dolorosa.

Esta vontade de mudança expressa pelos americanos não é, porém, uma situação típica. Da História da Humanidade conhecemos muitos líderes que, em nome do povo que representam e para ultrapassar dificuldades existenciais, se lançaram em reformas radicais. O que é curioso no que se está a passar é que a situação económica e militar da América está deveras saudável. O problema existencial em que a América pensa estar mergulhada é de outra ordem e tem a ver com os efeitos da globalização, que tornou dispensáveis muitos americanos sem grande qualificação, situação carregada ainda pelo desconforto causado pela imigração, fenómeno que atinge também a Europa. Só que, no caso da América, esta sempre foi uma realidade estrutural desde que o espaço foi conquistado aos índios. Este quadro depressivo foi incendiado pela agressão cultural que a esquerda, à falta de melhores causas, promoveu nos últimos anos em prol das minorias, reais ou imaginadas. E se uma elite que ignora os deserdados se perde em lutas incompreensíveis como a expiação da História e a promoção das questões de género, torna-se numa elite desqualificada para poder exigir os necessários sacrifícios para a resolução das questões existenciais. A novidade hoje é que se é uma constante da História que a fome desencadeia a revolta dos pequenos, nos dias que correm não é isso que faz derrubar Governos.

A explicação para esta revolução, com implicações planetárias, tem outros ingredientes para além dos de natureza económica ou securitária. Como explicar que um líder amoral, inculto e preocupado unicamente consigo próprio e com os seus negócios, tenha conseguido galvanizar uma nação com esta dimensão, para se lançar à destruição da ordem mundial? Uma das explicações tem com certeza a ver com a resiliência e capacidade de luta da personagem. Qualquer outro teria desfalecido e ficado silenciado pelo caminho. Mas este não largou e a perseverança, normalmente, paga. Mas estas características pessoais não explicam tudo. Há mais mecanismos em movimento que levaram a este resultado e que têm a ver com a deslocação das placas tectónicas onde operam as forças políticas com poder sobre o mundo. O que está então a acontecer?

A China, depois de mais de 150 anos de irrelevância, arrancou, nos finais do Séc. XX e sob a direcção de Deng Xiaoping, para o desenvolvimento galopante que lhe permite hoje questionar a liderança mundial. A Rússia, sem império e sem economia, optou por invocar Ivan o Terrível e atemorizar o mundo. A Ásia deixou de ser as traseiras do Globo e tornou-se um centro de inovação e de progresso tecnológico. A Índia e o Brasil exigem serem reconhecidas como potências e não como meras relíquias coloniais. Quanto à Europa, que nos últimos mil e seiscentos anos foi um verdadeiro saco de gatos em permanente guerra, está momentaneamente entretida com um projecto de União que lhe pode devolver alguma da relevância que perdeu com as suas duas guerras totais no Séc. XX.

E que tem isto a ver com as eleições americanas? Pois bem, tem tudo a ver. Para a Rússia, a diminuição da força europeia é um objectivo central que lhe pode abrir o caminho da recuperação do império. Sem dispor agora da religião comunista que lhe dava o suporte entusiástico por parte de milhões em todo o mundo, os estrategas do Kremlin de Putin decidiram tentar abrir uma nova frente de influência, mas agora jogando no extremo direito do espectro político. Funcionalmente, os extremos, arvorando-se de inimigos opostos, acabam por ser afinal semelhantes, porque para os dois campos a razão é substituída pela fé que, no caso da extrema-direita, se consubstancia na ideia da superioridade nacionalista ou da raça, nos valores tradicionais e na ficção de um passado medieval fabuloso. A Rússia, antigo baluarte do comunismo, assumiu agora ser a bandeira dos valores tradicionais e da defesa da religião cristã que afirma estar a ser atacada pelas elites woke. Apesar de muitos europeus admitirem partilhar este desígnio, convinha chamar a atenção para a dificuldade de conciliar os Evangelhos com o assassínio sistemático dos opositores políticos, com os saltos de janela sem paraquedas divino e com o saque das riquezas públicas em favor da corte privada do soberano.

Se no tempo do comunismo era fácil dizer aos diferentes cidadãos nacionais que estavam irmanados numa frente internacionalista na luta por um mundo novo, mais difícil seria, à primeira vista, promover a união da luta de nacionalismos franceses, espanhóis, portugueses, italianos e outros, todos juntos numa causa comum. Só que o milagre dos estrategas do Putin foi mesmo tê-lo conseguido. Assistimos hoje a reuniões de representantes da extrema-direita que, para Moscovo, têm um travo, um sabor que relembra o desaparecido movimento comunista internacional. É certo que, por enquanto, a causa dos nacionalistas é mesmo comum: trata-se de dissolver os mecanismos de concertação europeia e regressar ao palco das fronteiras, das economias fechadas, da cacofonia do ‘eu sou melhor que os outros’ e no final, da guerra. Conseguido este objectivo, Moscovo pode então encontrar apoios em geometria variável para os seus desígnios.

Mas por muito exímia que seja a Rússia nesta guerra de intoxicação e desintegração política do Ocidente, Putin sabe bem que já não está ao leme. O poder está mais a leste e o papel da Rússia é agora subalterno. Os trunfos não estão no Kremlin e o que os homens de Putin fazem, tem de ser conciliado com os objectivos estratégicos de Xi Jinpin. A Rússia pode ganhar mas é a China que se senta na cadeira central.

Trump encaixa perfeitamente neste xadrez. O seu ódio à União Europeia serve os objectivos da Rússia e põe fim ao apoio que a política externa dos EUA prosseguiu desde o fim da 2ª Guerra Mundial com o intuito de edificar um bloco pacífico e próspero na Europa. Quanto às relações EUA – China, apesar do que se diz, o espírito do deal de Trump pode levar a um acordo em que ganhos comerciais dos EUA permitam à China recuperar com facilidade Taiwan. Com a China reunificada, com a Ucrânia incorporada Rússia, com as fronteiras restabelecidas na Europa, com a queda do comércio internacional resultante das ‘lindas’ tarifas de Trump, o mundo muda mesmo.

Para nós em Portugal, se no final deste processo tivermos o escudo de volta e o consumo condicionado pela produção nacional, a vida vai mudar, vai mudar mesmo muito.