Em Março, perante uma barragem de críticas, António Costa segurou Graça Freitas no cargo de diretora-geral da Saúde com uma sentença definitiva, segundo a qual “não se mudam os generais a meio da batalha”. Na altura, o primeiro-ministro foi incrivelmente eficaz porque esta é uma daquelas frases com uma aparência instantânea de verdade incontestável. Na realidade, é uma proclamação absurda. Eu precisaria de tomar a decisão drástica e dolorosa de ocupar todo o meu sábado com este assunto se quisesse fazer a longa e exaustiva lista dos variadíssimos generais que, ao longo da História, foram substituídos — e bem substituídos — a meio de batalhas. Mas talvez seja suficiente referir o caso mais conhecido. A 11 de abril de 1951, Harry Truman destituiu o general Douglas MacArthur em plena Guerra da Coreia. O general, que desde a II Guerra Mundial acumulava os papéis de lenda e de herói, cometeu o inaceitável erro de se convencer que mandava mais do que o Presidente dos Estados Unidos e, ao fazê-lo, mostrou que não tinha o bom senso necessário para acabar a guerra o mais rapidamente possível. Obviamente, acabou demitido.

Esclarecido o equívoco de que uma batalha é uma garantia de emprego vitalício para os generais envolvidos — usem eles farda ou roupa civil —, torna-se possível olhar para o caso de Graça Freitas sem que a sua permanência no cargo pareça uma pesada inevitabilidade. E isso é especialmente útil esta semana, tendo em conta que a diretora-geral da Saúde cometeu dois erros fatais.

O primeiro erro foi político. Depois de o Presidente da República ter explicado em público que o parecer da DGS sobre a Festa do Avante tinha de ser revelado, por razões de transparência, Graça Freitas fez questão de escrever e publicar um comunicado oficial onde, mostrando músculos que na realidade não tem, afirmava de forma peremptória que “a DGS não divulgará o conteúdo deste parecer”. Não se tratava de uma decisão técnica, mas estritamente política — afinal, a eficácia das regras definidas não seria maior ou menor consoante se tornassem conhecidas ou se mantivessem secretas. Ao fim de apenas algumas horas, a Direção-Geral da Saúde deu um mortal à retaguarda e publicou o parecer, invocando o “interesse público” e a “tranquilidade social”, que obviamente não podiam permitir outra decisão. Ficou claro, porém, que o protagonismo dos últimos meses criaram em Graça Freitas a ideia de que, em matérias políticas (repito e insisto: políticas, não técnicas), uma directora-geral tem mais autoridade do que um Presidente da República.

O segundo erro de Graça Freitas esta semana foi técnico. Quando o jornal Público escreveu que havia crianças em perigo, retiradas às famílias, forçadas a um isolamento de 14 dias nas casas de acolhimento, mesmo tendo um teste negativo à Covid-19, a diretora-geral da Saúde foi intransigente. Recusou qualquer mudança na norma da DGS que impunha esse comportamento, invocando “a ciência” e jurando que a Direção-Geral da Saúde segue de forma indefectível as indicações técnicas da OMS e de “todas as instituições internacionais”. Por isso, cortou qualquer vaga esperança de alteração com esta frase: “Se se concluir que o período de incubação da doença é inferior a 14 dias, estamos dispostos a rever. Mas, até agora, não há orientações da OMS noutro sentido”. Escassos dias mais tarde, quando se soube que 14 rapazes tinham regressado de férias e estavam a cumprir quarentena num pavilhão de uma instituição, Graça Freitas recuou. Invocando o início das aulas, a diretora-geral da Saúde decidiu acabar com o isolamento obrigatório que pouco antes dizia ser tão necessário, o que nos leva a concluir que a insistência inicial se deveu à teimosia e não à “ciência”.

Perante isto, é preciso explicar uma coisa e perguntar outra. A explicação é esta: entre a primeira e a segunda declaração de Graça Freitas, a OMS não mudou as suas orientações sobre o período de incubação da doença. E a pergunta é esta: quando fez a sua primeira declaração, a recusar qualquer mudança na norma, Graça Freitas ignorava que as aulas iam recomeçar daí a uns dias? Ora, se a OMS não mudou as suas indicações e se a nossa diretora-geral da Saúde não anda perdida no calendário, fica a dúvida sobre se Graça Freitas alterou uma norma técnica por razões que não são técnicas ou se, simplesmente, não se sabe explicar. Seja como for, insistiu numa norma absurda mesmo quando se tornou evidente que ela era insustentável e só voltou atrás quando chocou contra um muro.

Em Portugal, não temos um Presidente Truman e, decididamente, não temos um general MacArthur. Mas talvez António Costa devesse ter a firmeza do primeiro e Graça Freitas o destino do segundo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR