Não há um português consciente à face da terra que não traga em si o eco destas vozes de Abril: o povo é quem mais ordena!
Se assim foi há 46 anos e, supostamente, assim continuou a ser durante este meio século pós-revolução, que sentido faz agora calar o povo e dizer-lhe que não tem voz para gritar o que sente, nem legitimidade para manifestar o que quer?
E o que o povo sente nestes tempos de pandemia está muito bem expresso na forma como tem agido. Apesar da incerteza sobre um futuro que se anuncia trágico, apesar do confinamento, apesar do colapso económico, apesar da perda massiva de empregos, apesar dos infetados, dos mortos e dos doentes com outras doenças que também precisariam de cuidados mas deixaram de ir às urgências e não foram operados nem consultados por médicos, apesar da dolorosa solidão provocada pelo isolamento, apesar de ser obrigatório para uns estarem na linha da frente e não haver qualquer liberdade de escolha para muitos, o povo manteve-se ordeiro, sensato, tolerante, cumpridor, zelador dos seus e protetor dos outros.
O povo tem sido exemplar e tem, inclusivamente, cultivado uma unanimidade que permite ao governo, governar, mantendo a serenidade e a estabilidade.
O povo deixou de poder visitar pais e avós, filhos e netos, amigos e conhecidos. O povo foi obrigado a ficar em casa quando precisava de espaços para manter compromissos, hábitos e rotinas essenciais. O povo foi proibido de acompanhar familiares queridos e entes muito amados em funerais. O povo foi inclusivamente impedido de se despedir, ainda em vida, destas mesmas pessoas que viriam a morrer na mais pavorosa solidão. O povo foi obrigado a tudo isto e muito mais sem quebrar.
O povo católico foi forçado a prescindir de igrejas e templos para missas diárias e dominicais, mas também para celebrar batizados, casamentos e enterros. Todo o povo crente ficou em casa na Páscoa, a ver o Papa celebrar sozinho aquele que é o tempo maior para os cristãos do mundo inteiro.
Ao povo muçulmano, budista, hindu e com outras crenças foram igualmente interditas todas as práticas de culto fora de casa.
Todo o povo português emigrado que se preparava para voltar à pátria pela Páscoa viu os seus voos cancelados e os seus planos furados. Todos os que esperavam por este tempo para ir à terra ou para estar com pais e familiares nas cidades, tiveram que se abster de os visitar e abraçar.
Por falar em abraços, o povo também sabe que foram banidos e suporta estoicamente mais esta privação, inventando maneiras para demonstrar afeto e proximidade.
Aliás, o povo tem sido épico a criar sistemas de entreajuda, a reforçar correntes solidárias, a inaugurar novos métodos para tentar não deixar ninguém para trás. A esmagadora maioria do povo tem-se abstido de criticar, de se indignar, de acusar, porque sabe que todos os esforços são poucos para ultrapassar esta crise e controlar a pandemia.
O povo sabe muito bem o que está a ser pedido a médicos e enfermeiros, bem como aos restantes profissionais de saúde. O povo não se queixa porque sabe que há sempre alguém que está pior, a sofrer mais ou a precisar mais. O povo sabe que os doentes oncológicos deixaram de ser uma prioridade e há tratamentos suspensos e cirurgias canceladas.
É do povo que têm emergido os grandes heróis do momento, sejam as pessoas que arriscam a sua saúde diariamente fazendo limpezas ou recolhendo o lixo nos hospitais e locais públicos, sejam as que repõem stocks nas prateleiras dos supermercados, sejam os que cultivam a terra, cuidam dos animais ou transportam os alimentos do campo para a cidade.
O povo não se cansa de agradecer aos bombeiros e a todas as autoridades, o povo nunca deixou de reconhecer os esforços da proteção civil para proteger o povo e não se esqueceu que continua a haver combustível nas bombas porque alguém o transporta e deposita lá.
O povo aprendeu a trabalhar em casa, a estudar em casa e a fazer as coisas da casa, tudo ao mesmo tempo, sem perder rendimento e tentando não falhar aos seus compromissos. O povo passou a andar de luvas e máscaras, mas também a lavar as mãos a cada passo. O povo, sábio como sempre foi, antecipou medidas de isolamento e distanciamento social, para tentar minimizar o impacto da pandemia e achatar o mais depressa possível toda e qualquer curva de contágios.
O mesmo povo que deixou de poder ir à escola, às universidades, às bibliotecas, às lojas e aos centros comerciais, também foi privado de ginásios e espaços verdes, da praia, da beira-mar e da beira-rio, de ruas, avenidas e jardins para passeios que permitiriam manter a saúde física e a sanidade mental.
O povo foi notificado de que não há restaurantes, nem futebol, nem concertos de música, nem teatro, nem cinema nem outras artes e desportos igualmente imprescindíveis que juntam mais de 100 pessoas, mas não se queixou. Sofre com isso e por isso, mas acata tudo sabendo que no povo há incontáveis artistas que de um dia para o outro ficaram extremamente vulneráveis, sem fonte de rendimento e sem saberem quando poderão voltar a viver do seu trabalho.
E foi o povo, este mesmo povo, que estando privado dos seus entes mais queridos porque os perdeu, ou porque tem que renunciar a eles enquanto durar a pandemia, foi este povo que sabe que não pode receber ninguém em casa nem visitar ninguém em casas alheias, que se espantou com a obstinação de um presidente da Assembleia da República que em pleno estado de emergência, quando é pedida ainda mais colaboração ao povo, decide celebrar o 25 A com deputados, convidados e jornalistas acreditados.
Primeiro o povo espantou-se e ficou incrédulo, mas depois indignou-se fez uma petição contra as celebrações que, à hora a que escrevo, já vai em cerca de 100 mil assinaturas. O povo, que foi obrigado a prescindir de quase tudo e não se queixa de quase nada quer apenas três coisas: coerência, consistência e consequência.
O povo português que nesta crise se tem revelado sensato, unido e cheio de sentido cívico, estando manifestamente à altura dos apelos dos políticos, quer que o dia 25 de Abril seja celebrado sem ajuntamentos nem convidados.
O povo sente-se muito bem representado pelo PM, pelo PR, por um elemento de cada bancada parlamentar e, claro, pelo presidente da AR. Tal como escreveu neste jornal Luís Rosa, “com a transmissão dos discursos, todo o país poderia assistir à cerimónia e ficaria com a mensagem correta de que vivemos um tempo de exceção que justifica medidas extraordinárias”.
Veremos no dia 25 de Abril se o povo ainda é quem mais ordena.