“Se nada se alterar, Novembro vai ser o pior mês de sempre nestes 44 anos de SNS”. Foi desta forma cândida que o Director Executivo do SNS, Fernando Araújo, comunicou aos portugueses que o SNS está por um fio, ou seja, nem no período da troika o nosso Serviço Nacional de Saúde passou por tamanhas dificuldades. Não posso deixar de imaginar o que passará pela cabeça de Pedro Passos Coelho ao ouvir estas palavras, palavras essas que nunca poderiam ser ditas por Manuel Pizarro, Ministro da Saúde socialista; seria fatal que aqueles que juraram “salvar o SNS” fossem, na verdade, os seus coveiros (a este propósito é difícil de compreender a dificuldade do actual PSD em defender o legado de Passos, estarão à espera que seja o próprio a fazê-lo?).
Fernando Araújo disse aquilo que todos os que trabalham no SNS e aqueles que dele precisam estão fartos de dizer, o SNS não está à beira de colapsar, o SNS já colapsou há muito tempo. Aquilo a que estamos a assistir agora é apenas ao estertor final. Durante décadas as urgências funcionaram assentes na boa vontade e sentido de missão dos médicos que se habituaram a fazer mais de 150 horas extra no serviço de urgência. A deterioração das condições de trabalho, aliada a uma grelha salarial muito pouco competitiva, foi a gota de água. Os médicos gostam de palmas, mas gostam ainda mais de trabalhar com condições dignas, coisa que hoje o nosso SNS não oferece por opção política, resta lembrar os 3.000 milhões de euros “a voar” na TAP, por exemplo.
A questão agora é: como é que saímos disto? A resposta não se afigura fácil, no entanto é nas situações de crise que se fazem as reformas mais disruptivas e é isso que o governo deveria dizer claramente aos portugueses. O Estado não tem de prestar todos os cuidados de saúde, o Estado tem de assegurar que todos os portugueses, independentemente do local onde vivam ou da sua condição económica, recebem bons cuidados de saúde, sobretudo cuidados em tempo útil e com dignidade.
O SNS de hoje não pode funcionar como o SNS de há 40 anos, porque o país e os portugueses também não são os mesmos. É fundamental termos um SNS focado nos desafios do futuro na saúde: envelhecimento da população, evolução científica e tecnológica e competição entre países por profissionais de saúde são três dos grandes desafios que se colocam a um país como Portugal; o SNS tal como o conhecíamos terá que, inevitavelmente, evoluir porque simplesmente já não é sustentável. Este é o momento para essa reforma.
A primeira pergunta a fazer pelos decisores políticos deveria ser esta: qual o papel que o Estado tem de ter na saúde; o que é fundamental o Estado fazer que outros não podem ou não querem fazer? Existem algumas áreas onde o Estado tem ou deve estar na saúde, as mais óbvias serão a emergência médica feita pelo INEM, a saúde pública ou a medicina legal.
Isto deixa de fora hospitais e centros de saúde, os locais por excelência de prestação de cuidados de saúde. A pergunta que deixo é esta: estará o país preparado para que todos os hospitais e centros de saúde passem a funcionar em regime de parceria público-privadas ou sejam mesmo privatizados, ficando o Estado a gerir aqueles nos quais nenhum privado mostrou interesse? Estamos enquanto sociedade preparados para isto?
A verdade é que quando se colocam tendas à porta dos centros de saúde para que as pessoas pernoitem enquanto esperam, na esperança de conseguir uma consulta num centro de saúde, ou quando uma grávida tem de fazer centenas de quilómetros para fazer uma ecografia ou ter o seu filho, quando isto acontece então o colapso já se deu. O Estado demonstrou que já não tem condições de estar no sector da saúde da mesma forma e o que há a fazer agora é procurar alternativas, entregar a gestão e a prestação de cuidados de saúde a quem já provou que o consegue fazer com qualidade, reservando-se ao Estado o papel de regulador, evitando abusos por parte dos prestadores privados. Será isto a panaceia para todos os males? Não, não é. Ao Estado caberá sempre um papel fundamental na área da saúde, seja na regulação seja na prestação de cuidados onde não exista alternativa ou nas áreas que já referi; o Estado terá sempre de ter um caderno de encargos bem definido pelo qual os prestadores privados se deverão guiar e instituições como a Entidade Reguladora da Saúde e Direcção Geral de Saúde deverão ver os seus meios substancialmente reforçados.
Muitos profissionais de saúde “arrepiam-se” quando ouvem a palavra privado, dizendo que estes apenas procuram o lucro, e têm absoluta razão. Mas o lucro não cai do céu, para que isso aconteça as instituições de saúde terão de ter os melhores médicos, boas instalações e meios de gestão eficazes e profissionais. A verdade é que hoje as instituições privadas oferecem melhores remunerações associadas a melhores condições de trabalho. Acredito que irão continuar a fazê-lo se forem chamados a gerir instituições que hoje estão na esfera do Estado.
Volto ao início deste texto, não deixaria de ser deveras irónico que aqueles que iriam “salvar o SNS” sejam afinal os seus coveiros. No ponto em que estamos isso já nem importa, o que importa agora é evitar não a morte do SNS, mas de pessoas, seja de que forma for.