Vai muito grave a crise em Moçambique após as eleições de 9 de Outubro. Incomoda o que as notícias nos trazem de Moçambique. Incomoda, talvez ainda mais, a indiferença. A indiferença é um insulto a quem sofre.
Estamos para ver algum sinal de esforço do governo e da polícia para descobrir, prender e levar a julgamento os autores do assassinato, frio e brutal, em 19 de Outubro, de Elvino Dias e Paulo Guambe. Guambe era mandatário do PODEMOS. Elvino desempenhava papel crucial na contestação judicial dos “resultados” eleitorais – antes do crime, denunciara publicamente ameaças contra a sua vida. O porta-voz da PRM em Maputo, Leonel Muchina, imputou o crime a “discussão derivada de assuntos conjugais”, como se apressou a declarar à Deutsche Welle. Com os corpos ainda quentes, a polícia achou bem brincar. É por isso natural que, um mês depois, nada de sério tenha a dizer. A polícia e o sistema judiciário continuam provavelmente ocupados na busca dos assassinos de Américo Sebastião, feito desaparecer em 2016. Trabalham muito.
A 24 de Outubro, a CNE moçambicana divulgou os resultados, manipulados e fraudulentos. Atribuiu 70% ao candidato da FRELIMO, dando 20% ao colocado em segundo lugar (Venâncio Mondlane, do PODEMOS) e afundando a RENAMO e o MDM e seus candidatos para valores de 5% e 3%. Na Assembleia da República, o panorama seria similar, com a FRELIMO a capturar 195 dos 250 lugares, ou seja, 78% do número de deputados! E, nas eleições provinciais, idem: a FRELIMO domina tudo. A participação eleitoral, essa, foi muito baixa: 43,5%.
Tudo isto entornou o caldo. São muitos os moçambicanos que, sem armas, irrompem em protestos populares, ora espontaneamente, ora respondendo à chamada de Venâncio Mondlane, que emerge como líder da alternativa e do descontentamento. Fontes independentes afirmam que os editais das secções de voto foram fotografados, mostrando Mondlane vencedor.
A polícia reprime o povo, às vezes com extrema violência: já foram mortos mais de 40 manifestantes, às balas da polícia – e o número tem crescido. Na Zambézia, houve o reverso: o povo, irado, linchou um dirigente provincial da FRELIMO e raptou a mulher de outro. Ouvi numa rádio uma analista moçambicana comentar que “já estivemos mais longe de nova guerra civil”. E, face à observação da jornalista, dizendo que “o outro lado não tem armas”, replicou: “Dantes também não. As pessoas pegam em azagaias ou no que houver”.
Na verdade, o que está a passar-se?
Em síntese, o que se passa é que a FRELIMO espezinha o Acordo Geral de Paz de 1992. Promoveu um regime não só de fachada, mas de fantochada democrática. A consequência que provoca é a indignação cada vez mais irada da oposição e do povo. Se a FRELIMO tivesse cumprido e velasse pelo cumprimento do Acordo de Paz, nada disto aconteceria. Moçambique estaria em tranquilidade e todos os moçambicanos a trabalhar para o seu progresso, felicidade e progresso.
A primeira vez que fui a Moçambique foi imediatamente a seguir ao Acordo de Paz e por causa dele. Em 1993, estava na TVI, onde apoiámos uma formidável iniciativa do Fórum Estudante, liderada por Rui Marques e Diogo Vasconcelos, de que éramos parceiros: um apelo geral pediu às crianças portuguesas que entregassem nas suas escolas um quilo de arroz e um livro para ser levado para as crianças moçambicanas. A adesão foi enorme – podemos dizer com propriedade: “coisa rara e nunca vista”. Foi a Missão Boa Esperança, que envolveu grande logística e capacidade de organização, desde as escolas aos dois navios cargueiros afretados, passando pelos contentores e pelas estações e comboios da CP, que tudo transportaram até Leixões.
Fui designado pela TVI para fazer a entrega às autoridades moçambicanas, à CARITAS e a outros, das toneladas de arroz e dos milhares de livros reunidos. Lembro bem esse tempo. Apesar de as armas se terem calado há cerca de dois anos, o ambiente geral era contido e fechado. Dhlakama ainda não estava em Maputo, mas, em segurança, no mato. A sede da RENAMO na capital, muito vazia, era assegurada por Raul Domingos, então número dois. Das partes, doutras instituições e da população, não senti entusiasmo, mas esperança – e a esperança era forte. A guerra civil fora dura e cruel. Deixara marcas no espírito da terra e da gente. A Comunidade de Santo Egídio fizera excelente trabalho para pôr as partes a falar e, com o apoio de testemunhas e facilitadores, ajudar a compor os acordos que selaram a paz.
O Acordo não foge muito ao convencional nestas crises e tudo teria corrido bem, se tivesse sido cumprido. O quadro fixado para o futuro era o Estado de Direito Democrático, o que, passado para a Constituição e as leis, resolvia de modo mais do que suficiente o conflito político subjacente à guerra. Desenhava uma democracia multipartidária, estipulava as traves do sistema eleitoral e suas garantias, fixava o regime dos partidos políticos, assegurava as liberdades fundamentais. O povo seria o juiz e decidiria livremente a cada eleição. Mas, como a história do mundo mostra, só vale a pena definir as regras do jogo, se houver vontade de jogar de acordo com as regras. Se não, de nada servem.
Passados 30 anos já, em Moçambique ainda não há Estado de Direito Democrático. Nunca houve. O problema é este. Nem se pode dizer que a FRELIMO rasgou o Acordo. Em bom rigor, a verdade é que, 30 anos depois, ainda não começou verdadeiramente a cumpri-lo. Pode até dar-se o caso de os dirigentes de hoje pensarem que “aquilo” não passa de amontoado de palavras e não saberem o que as palavras dizem.
É muito triste um país ter nas mãos um documento histórico notável, produzido no rescaldo de muito sofrimento, e jogá-lo no lixo como trapo, para continuar no sofrimento. Seria natural que houvesse alguns problemas a seguir a 1992, pois não é fácil passar de um regime duro de partido único para um regime pluripartidário e democrático, baseado na lei e em eleições livres periódicas. Mas o que se passou foi diferente. Por um lado, em Moçambique nunca houve eleições limpas, sem fraudes; por outro lado, cada ciclo foi pior que o anterior: Guebuza pior que Chissano, Nyusi pior Guebuza. A Carta de Moçambique escreve, nestes dias, sobre os resultados eleitorais proclamados pela CNE: “um escrutínio considerado como o mais fraudulento da história de Moçambique”. Isso! O mais fraudulento da história de Moçambique!
Todos os escrutínios tiveram fraude, às vezes, em dose pequena, outras, como agora, em dose gigante. Apoiada nos seus agentes por todo o lado, foi sempre a FRELIMO a calcular e a administrar a dose. Em 2004, no Parlamento Europeu, fui observador às eleições moçambicanas de Dezembro. Estive em Maputo, Beira e Nampula e vi. Nessas eleições, houve muito alta abstenção, que se via a olho nu. Por isso, sem embargo de casos de fraude, a convicção entre observadores, nessa eleição, foi a de a RENAMO não ter ganho, sobretudo, em virtude da alta abstenção, não tanto pelas fraudes: o descontentamento fora canalisado para a abstenção, não para uma outra escolha. Em conversa com D. Jaime Gonçalves, bispo da Beira, grande figura de Moçambique, um dos mediadores signatários do Acordo Geral de Paz de 1992, partilhei aquele raciocínio e ele respondeu-me: “A abstenção? Sim, os eleitores não têm confiança. Já sabem que, votem ou não votem, a FRELIMO ganha sempre.” Entendi.
Mesmo nas autarquias, o “gradualismo” tem andado muito devagar e com recuos recentes no regime de tutela. As eleições autárquicas, iniciadas em 1998, ainda não cobrem metade da população, 25 anos depois; e também nunca escaparam ao vício da fraude, tamanha é a obsessão com o “método”. Houve sempre problemas e queixas. Nas de 2023, houve contestação tumultuosa em Maputo e Quelimane, onde eram alvejadas duas figuras da oposição: Venâncio Mondlane e Manuel Araújo. O regime recuou em Quelimane. Mas, agora, contra-atacou em força, incluindo na Zambézia – sem escrúpulo, nem vergonha, sem decência, nem humanidade: já vão em 2 + 45 mortos, e a subir.
Estes actos dos dirigentes da FRELIMO desonram as assinaturas de 1992: desonram as assinaturas de Chissano e Dhlakama, com as de Robert Mugabe (Zimbabué) e Gaositwe Chiepe (Botswana), como testemunhas, e as de Mario Raffaelli, D. Jaime Gonçalves, Andrea Riccardi e D. Matteo Zuppi, pelos mediadores.
A solução para esta crise está, aí, em 1992 e é simples: honrar o assinado, honrar os líderes que assinaram, acreditar a sua palavra e a dos que testemunharam e mediaram. Honrar e servir o povo que teve esperança. Cumprir é sempre o mais simples. Violar é que é complexo, como está brutalmente à vista. Não venham dizer a qualquer português que é complicado: há 50 anos que temos eleições e não nos arrependemos.
Acredito na revelação feita pelo prof. Fernando Jorge Cardoso, que não foi desmentida: todos os editais das assembleias de voto foram fotografados e essas fotos foram enviadas para o Conselho Constitucional e diversas embaixadas em Maputo. É esta a solução óbvia.
Somar os números constantes dos editais fotografados dá os resultados verdadeiros, não sendo necessário repetir eleições. Haveria somente que as repetir em casos pontuais: nas assembleias de voto cujo edital possa não existir, nem a respectiva cópia; e naquelas em que o edital tenha sido impugnado, com provimento. Basta fazer isto. Acabará a crise.
Contas certas, em suma. As boas contas fazem os bons amigos, como diz o ditado. Quem quer paz em Moçambique deve guiar-se pelos princípios, valores e regras estruturais do Acordo Geral de Paz de 1992 e pelo seu espírito.
É isto que deve guiar não só todos os moçambicanos, mas a comunidade internacional também. Não é por falta de instâncias com capacidade que a solução não é accionada. Há-as com fartura: Conselho Constitucional e CNE, em Maputo; SADC e União Africana, em África; União Europeia e ACP-UE, ONU e Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no mundo; no plano partidário, a Internacional Socialista, a que pertence a FRELIMO; a imprensa, rádio e televisão, cobrindo com proximidade e independência; Portugal, Brasil e CPLP, na cooperação mais próxima. Está aí alguém? Basta olhar ao sofrimento dos moçambicanos e abandonar a indiferença.
Em 18 de Dezembro, quando o Parlamento Europeu reunir, em Estrasburgo, para entregar o Prémio Sakharov 2024 a María Corina Machado e Edmundo González Urrutia, por causa da democracia na Venezuela, bem podia haver uma palavra e um gesto para o povo de Moçambique. O enredo é o mesmo: uma eleição roubada e uma autocracia arrogante e violenta. Esquecê-lo derrota. Lembrá-lo faz avançar. E, finalmente, triunfar.