A cultura é um jogo de possibilidades. De possibilidades de escolha antes de mais: não está inscrita nos genes, nem na cor da pele, nem na geografia. Ainda que sejamos sempre nós e as nossas circunstâncias, seres mortais e circunscritos; somos também pó das estrelas e, por isso, universais, destinados ao sonho e à utopia.
Cada cultura (individual, familiar, local, regional, nacional…) tal como tem uma vertente de apelo essencialista e de fechamento, tem sempre em si a possibilidade de tradução: o movimento que vai de um ao outro. Como a sístole e a diástole em cada organismo, em cada sociedade e cultura o apelo ao sangue coexiste com o do sémen e da exogamia, a ligação a um solo com o apelo à viagem, uma identidade vertical ou histórica com o de uma identidade horizontal ou cosmopolita.
Há por vezes, demasiadas vezes, a ideia de que estamos aprisionados pela nossa história. Tal ideia repete-se em historiadores (‘o passado serve para explicar o presente’), em sociólogos e antropólogos (o ‘ciclo vicioso’ ou ‘cultura da pobreza’), em cientistas políticos (a ‘dependência do trajecto’ que impede a mudança) … A falácia de tal raciocínio é que cada indivíduo e cada cultura é, repito, um jogo de possibilidades, neste caso entre capitais incorporados no passado e horizontes de expectativa em relação ao futuro. A omissão escandalosa dos ‘horizontes de expectativa’ como variável central na nossa identidade presente, e mudança que queremos, tem, de facto, implicações terríveis: aprisiona-nos num passado mítico (narrativo), dificulta ou impede-nos de nos projectarmos no futuro e, especificamente, por essa via cria um paradoxo entre lealdade e identidade.
O paradoxo entre lealdade e identidade revela-se quando uma qualquer narrativa histórica nos pretende encerrar numa lealdade que nos obstaculiza ou impede mesmo uma identidade desejada. A lealdade (imposta até por uma heteroidentificação) para com uma qualquer narrativa histórica fixada a partir do presente serve tão só ao fechamento cultural e, consequentemente, a guerras culturais. Mas, pior, cria obstáculos ao cosmopolitismo em que muitos de nós (porventura a maior parte) queremos viver e nos identificamos. Dito de modo mais simples e direto: tem de haver espaço de possibilidade no presente para pensar e concretizar a interculturalidade em conjunto sem que as diferenças bio-territorais (brancos-negros; Europa-África; etc) sejam dominadas pelos diferendos que as narrativas históricas criam.
Se os nossos horizontes de expectativa são de construção de ecumenes (espaços habitados por todos, sustentados por um sistema o mais aberto possível de fluxos e encontros culturais), e tal identidade se confronta com qualquer tipo de pertença ou lealdade com o território, o sangue, a cor da pele ou outro qualquer elemento atávico, ficamos limitados como indivíduos em tradução. Portanto, tal significa que temos de construir uma certa indiferença em relação a tais variáveis. Só assim poderemos construir ecumenes não territoriais, sustentadas na tradução como cultura.
Num quadro de lealdade e identidade, pugnar pela indiferença como forma de emancipação pode, claro, configurar uma espécie de negação. É, em parte, verdade que identificar-se com um determinado destino coletivo implica um corte em relação ao passado: é isso a transformação. Tornando as coisas claras: os portugueses não se identificam como descendentes de negreiros nem como colonialistas ou seus descendentes. Essa negação portuguesa, típica de um luto pós-colonial, quer ser trazida à existência por outros. Esse é, talvez, o principal problema em sociedades pós-conflito (muitas vezes, mas nem sempre, também pós-coloniais) na opção entre o do julgamento por crimes passados e necessárias reparações e as comissões de verdade e reconciliação. A opção pelas comissões de verdade e reconciliação (a fazer ainda em alguns países de expressão portuguesa) significa, claramente, uma opção em função não de uma lealdade para com o passado mas antes para com o futuro e os horizontes de expectativa. Por muitos custos que tenha (e tem)A essa é a opção correta: só ela impede o ciclo vicioso e mimético da violência. Só ela impede a procura constante de bodes expiatórios. Só ela trava o ódio e a vingança como objetivo.
Uma comissão de verdade e reconciliação possibilita que as histórias da África, da Ásia e da América e, porventura, do próprio Portugal possam ser escritas de forma cruzada, agregando quer uma revisão do que já existe de trabalho académico, quer um programa de pesquisa específico de forma a que uma história antropológica seja feita. Mas tal programa só tem sentido num quadro de uma diplomacia cultural clara no âmbito da CPLP e em que o objetivo final seja de facto o preparar do caminho para uma cidadania partilhada. Ou seja, no final precisamos de construir uma indiferença emancipadora.
A indiferença é um trabalho humano que tem sido feito ao longo da nossa história enquanto sapiens-sapiens. Sustentar a identidade na diferença tem muitas vezes como consequência a violência; já a identidade sustentada na indiferença e na reserva mental a ela associada é, em si mesmo, um mecanismo cultural de evitamento da violência. Uma vez que os humanos não têm esses mecanismos inatos como vários outros animais, temos de os construir culturalmente. A evolução nessa construção vai de uma distância geográfico-territorial e construção física (muros) a uma distância ideológica e, repito, à reserva mental, enquanto ‘muro’ cultural. O espaço que vai de uma tolerância passiva a uma tolerância ativa faz-se todos os dias e está todos os dias em risco. Toda esta evolução significa, de facto, um duplo movimento, uma dupla tradução: a interiorização do estrangeiro e o estrangeiramento do de dentro.
Esse trabalho da emancipação pela indiferença tem dado origem a sistemas sociais específicos. A cidade é a construção social humana mais evidente a esse propósito. As cidades são sistemas de convivência de culturas em contínua tradução. O urbanita define-se como ‘aquele que vem de fora e que fica, até decidir partir’. Por isso, as cidades são os lares dos estrangeiros e do estrangeiramento. As cidades ancoraram sociedades e culturas locais e, depois, nacionais e imperiais. Na actualidade não só a fórmula imperial foi e é fortemente criticada e desconstruída como se considera mesmo, em vários casos, que até a fórmula nacional não é a mais adequada. Houve uma explosão da auto-determinação nos últimos 75 anos, tendo-se multiplicado pelo menos por três o número de países entre o fim da 2.ª Grande Guerra e o presente. Mas esta explosão da diferença no mundo vai-se construindo ao mesmo tempo que se criam espaços de indiferença emancipadora. Olhar para os imperialismos sobre a diferença e opor-se-lhes imperialismos da diferença é optar por uma dicotomia que impede, muitas vezes, de ver o terceiro excluído: um terceiro espaço de convivialidade e de cidadanias regionais transoceânicas. Esse é ainda o objetivo da modernidade a concretizar de forma plena.
Assim, o destino humano na visão dos enciclopedistas oitocentistas pela unidade de toda a obra humana e a instrumentalização da razão para tal propósito continua presente. Ou seja, a modernidade inacabada, mas em aceleração paroxista é vivermos entre cidades-mundo como cidadãos de pleno direito de regiões internacionais, numa identidade de ecumene (com todas as diferenças biológicas e culturais possíveis). A Europa já é, na actualidade, o maior aeroporto do mundo: 18 países europeus têm passaportes que possibilitam, sem visto ou com visto à chegada, acesso entre 194 e 191 países do mundo, ocupando Portugal o 4.º lugar nesse ranking (Henley Index). Uma certa indiferença cultural, típica de terminal de aeroporto, é a chave para manter a livre expressão cultural e todas as demais diferenças sem que se tornem diferendos.
Precisamos de criar uma inteligência coletiva em torno da promoção de ecumenes. Esse é o desígnio para não retrocedermos na construção de uma convivialidade ilimitada planetária. Ela constrói-se em função de novos espaços públicos nas cidades; de bairros da megadiversidade; de zonas comerciais turísticas e hostels quais praças ou lounges de terminais de aeroporto; de ‘cidades santuário’ para migrantes e refugiados; etc. Esse é o caminho, essa é a viagem!