Nas últimas semanas, ouvimos vários argumentos a favor e contra a dissolução da Assembleia da República por parte do Presidente da República. Independentemente do posicionamento político de cada um, e da sua opinião sobre o actual governo, têm sido esgrimidos vários argumentos que me parecem falaciosos. O primeiro é o da ilegitimidade democrática de uma dissolução da A.R. passado tão pouco tempo das últimas eleições legislativas. O segundo, frequente em Portugal, é a ideia de que as eleições constituem uma forma de instabilidade e que, por isso, devem ser evitadas quando há outros objectivos mais prioritários, sejam estes melhorar a performance económica do país, resolver os problemas da saúde e da educação ou a “a implementação do PRR” (o que quer que isto queira dizer).

Analisemos com atenção ambos os argumentos. O primeiro resulta de uma leitura errada do que são as regras do jogo democrático. A constituição de um país, pelo menos no que toca às regras que atribui aos vários actores democráticos, deve ser lida de forma pragmática e política. Devemos pensar sempre na seguinte questão: o que é que o texto constitucional permite fazer? O benefício de olhar para o texto de forma pragmática é não descartarmos a priori, por uma série de enviesamentos, possibilidades realistas que podem vir a ocorrer. Normas informais não escritas ou a “prática constitucional” passada não têm precedência sobre as regras escritas. Quando ambas entram em confronto, as regras escritas sobrepõem-se aos hábitos. Argumentos relativos à “prática passada” ou a “normas informais” podem sempre ser rejeitados no dia em que, de forma perfeitamente legitima, um actor do jogo político decida utilizar as regras escritas de uma forma que nunca ninguém antes usou. Por isto mesmo, ao contrário de certos sectores da direita, sempre pensei que em 2015 nunca houve qualquer “golpe constitucional”: as regras do jogo escritas permitiam perfeitamente sustentar tudo o que sucedeu.

A Constituição da República Portuguesa diz-nos claramente que o Presidente da República é eleito por sufrágio universal directo, por mais de 50% dos votos, e tem o poder de, entre outras coisas, dissolver a Assembleia da República e demitir o governo (este último, e apenas este último, em caso de “irregular funcionamento das instituições”, uma expressão propositadamente vaga). Ao contrário do que é frequentemente repetido e assumido em Portugal, o Presidente da República não é um árbitro do jogo, mas sim um mais um jogador como todos os outros, eleito através de uma eleição e com preferências políticas e ideológicas como todos os outros jogadores. Se a única função do PR fosse ser um “árbitro neutro” do jogo, então o melhor método para a sua selecção não seria uma eleição directa e democrática, onde participam partidos políticos e movimentos políticos com ideias diferentes para o país.

Assim, se é verdade que o actual Governo e Primeiro-Ministro foram seleccionados por uma Assembleia da República democraticamente eleita em Janeiro de 2022 e na qual o Partido Socialista tem uma maioria de deputados, também é verdade que o actual Presidente da República foi democraticamente eleito em Janeiro de 2021 com cerca de 60% dos votos. E assim como os eleitores votaram consciente e deliberadamente em determinadas forças políticas em Janeiro de 2022, também o fizeram em Janeiro de 2021, conscientes de que estavam a eleger um Presidente da República, de uma cor política diferente do actual PM, para um segundo mandato, e com o poder de dissolver a AR e demitir o Governo. Ambos têm total legitimidade democrática para agir dentro das regras do jogo que a CRP lhes oferece.

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É igualmente legítimo, do ponto de vista democrático, dissolver a AR, demitir o governo ou deixar tudo como está. Diferentemente do debate sobre a legitimidade democrática, é a discussão sobre a desejabilidade de dissolver a Assembleia da República passados apenas 15 meses da sua eleição. Aqui, para além das opiniões políticas concretas em relação a este governo, entram muitas considerações que devemos pesar. A mais importante é a ideia de que um governo em funções deve ter uma janela temporal longa o suficiente para conseguir implementar o seu programa político. Desenhar e implementar políticas públicas com qualidade demora algum tempo, como também demora algum tempo observar os seus efeitos reais, que devemos ter em conta para avaliar o governo. No limite, se trocarmos de governo a cada 12 meses, entramos numa dança das cadeiras na qual nenhum governo eleito tem tempo ou capacidade para executar as suas reais funções, para além da política comunicacional diária. No entanto, este objectivo maior deve ser pesado face a outras considerações. Por exemplo, se existir um impasse político no qual o governo do dia não esteja a implementar programa nenhum, mas antes a deteriorar a vida dos cidadãos. Então, ai, ir para eleições não é criar instabilidade, é antes tentar solucionar a instabilidade já existente. Muitas outras possíveis situações existem em que ir para eleições pode ser, no final das contas, mais avisado do que não ir. Mais, a existência real dessa possibilidade – de verem o seu mandato terminar antecipadamente caso estejam a desempenhar um mau papel – gera incentivos para os governos em funções sejam melhores. Isto é, quando os políticos em funções se sentem demasiado seguros, imunes à avaliação do povo, poderemos entrar numa situação altamente perversa onde os governos deixam de ter incentivos para trabalhar em nome do melhor para as suas populações.

A investigação existente sobre frequência das eleições é variada e limitada. Por um lado, mesmo em países menos desenvolvidos, uma maior frequência de eleições parece estar associada a melhores escolhas de políticas públicas por parte dos governos (exceptuando casos extremos, por exemplo uma frequência anual ou maior), precisamente porque induzem accountability aos governos. Por outro lado, também é verdade que uma frequência muito elevada (ex. anual) pode gerar fadiga aos eleitores, que assim se tornam “insensíveis” e “fartos” de ir às urnas, aumentando os níveis de abstenção. Na verdade, a participação eleitoral parece ser a dimensão mais prejudicada por uma frequência demasiado elevada de eleições. No entanto, não conheço nenhum estudo que demonstre que uma maior frequência de eleições gera pior desempenho económico. Acresce que não basta apenas mostrar que ambas estão associadas, porque muitas vezes é o próprio desempenho económica negativo que gera a instabilidade política que leva a um maior número de eleições, e não o contrário. Nestes casos, as eleições frequentes tentam resolver a instabilidade política subjacente, e não o contrário. As eleições são um método não violento de resolver conflitos e tentar ultrapassar impasses. Quem afirma que as eleições geram instabilidade necessita de o demonstrar e de fundamentar a hipótese, bem realista, de que, muitas vezes, é a instabilidade governativa e social e o mau desempenho nos mais variados sectores que levam à realização mais frequente de eleições.

Portugal não tem uma média de eleições demasiado elevada. Desde 1976, tivemos eleições legislativas, em média, a cada 3 anos. Ir a eleições não é uma chatice, não é uma trabalheira logística que atrapalha a vida comum dos cidadãos e políticos, nem um obstáculo ao funcionamento regular das instituições. As eleições são uma peça fundamental do regular funcionamento das instituições. Ir a eleições constitui um momento e uma prática da ética democrática colectiva absolutamente essenciais, onde todos os cidadãos tomam consciência, de forma mais concreta, da sua igualdade política, da sua participação na responsabilidade colectiva da escolha, mas também do seu papel individual na prática democrática.

Claro que outros poderão argumentar que devolver a palavra aos eleitores não é necessariamente avisado. Serão os eleitores racionais e confiáveis o suficiente para lhes confiarmos a democracia? Esta questão foi recorrente ao longo das últimas décadas, mas continua a ser relevante a analisada por especialistas e pensadores contemporâneos, que oferecem novas perspectivas. De um lado estão os partidários de uma tradição simbolizada por Walter Lippmann, como os politólogos Achen e Bartels, que consideram que os eleitorados são manipuláveis e miópicos, demasiado vulneráveis a reações emocionais, decisões tribais ou pouco racionais, incapazes de realizar avaliações coerentes e realistas da performance dos políticos em funções. Do outro lado, estão muitos cientistas sociais e pensadores, talvez herdeiros de um conjunto de tradições muito díspares que têm em comum um certo pragmatismo, como John Dewey, Schumpeter e Przeworski. Muitos estudos e análises contemporâneas, absolutamente indispensáveis a uma análise séria da questão, revelam que, mesmo sendo susceptíveis a imensos defeitos cognitivos, os eleitorados são, ainda assim, capazes de realizar avaliações suficientemente racionais e realistas que não só os fazem votar de acordo com os seus interesses materiais, como também gerar uma ameaça de rotatividade de poder suficientemente forte para impedir os nossos governantes de serem demasiado maus. Embora essa discussão seja longa, e tenha de ficar para a próxima crónica, inclino-me com base na evidência de múltiplos países e ao longo da história, para o segundo campo. Assim, recuso-me que usem a desculpa de que são as eleições que geram instabilidade ou lutas políticas fúteis e dispensáveis. Se não querem ir a eleições antecipadas, os governantes têm de fazer por isso!