T.S. Elliot, George Steiner e Jordan Peterson são académicos e intelectuais muito respeitados e com alto impacto no seu tempo pelas suas ideias desassombradas e proféticas. O que têm em comum? Uma “conversa” entre Elliot e Steiner, retomada de forma indireta por Peterson, o argumento de que o mundo ocidental abandonou a cultura que o viu nascer e crescer e que está a cair no barbarismo. Estes intelectuais começaram e continuaram conversas parecidas e enfrentaram problemas intelectuais similares e estes influenciaram e influenciam o curso das ideias no mundo desde o pós-guerra do século XX. Todos se questionaram sobre o que é o conceito de cultura e se este está ou não em decadência no mundo ocidental. Estará?
Elliot define “cultura” da seguinte forma: “Por “cultura”, então, quero dizer antes de tudo o que os antropólogos querem dizer: o modo de vida de um determinado povo a viver junto num lugar. Esta cultura faz-se visível nas suas artes, no seu sistema social, nos seus hábitos e costumes, na sua religião” (Elliot, 1948, p. 120).
Hoje em dia, esta “conversa” mantém-se. Por exemplo, vemos, de um lado, ameaças dos chamados “populismos de direita”, segundo uns; por outro, vemos o crescimento das políticas de identidade, as quais contestam instituições tradicionais como a família e a conceção biológica sobre os sexos. Estas guerras culturais são cada vez mais acintosas e estão a provocar transformações vincadas no nosso mundo, incluindo no nosso país e nos próximos tempos vão-se adensar.
T.S. Elliot e a cultura ocidental perdida
T.S. Elliott, o famoso poeta e ensaísta, pouco depois do final da Segunda Guerra, em 1948, reuniu em “Notes towards the definition of culture” (Elliot, 1948) um conjunto de ideias à volta do conceito de cultura e advogou que esta estava em decadência no mundo ocidental, porque queria rejeitar o seu legado de cultura cristã. Com “cristão” não queria advogar uma cultura “religiosa”, mas valorizar a síntese que deu origem à cultura cristã: Grécia, Roma e Israel. Começa por argumentar que o mundo ocidental no dealbar da Segunda Guerra caiu num barbarismo e que a cultura, como a conhecíamos, estava em declínio. Segundo Elliot, foi no Cristianismo que as nossas artes e leis foram fundadas, até à segunda metade do século XX. “Um europeu pode dizer que não é cristão mas o que ele faz, afirma ou acredita é algo cristão e depende dessa cultura para o seu significado. Só uma cultura cristã podia ter produzido um Nietzche ou um Voltaire. Não se acredita que a Europa possa subsistir ao completo desaparecimento da fé cristã” (Elliot, 1948, p. 122).
O que devemos ao Cristianismo não é só a fé, mas as artes, o direito romano, que fez tanto para moldar o mundo ocidental, através disso temos a nossa conceção de moralidade pública e privada. Igualmente, ao nível das correntes económicas, muito devemos a esta tradição, Grécia, Roma e Israel, graças a 3000 anos de história, podemos traçar a nossa descendência.
Basta pensarmos que o conceito de “perdão” ou o cuidado com os pobres, é uma ideia cristã. A lei de talião era a que vigorava até Cristo e o Estado Social é uma invenção do Século XX. Antes, eram as ordens religiosas que prestavam assistência aos que tinham menos sorte na vida.
George Steiner e a salvação pela ciência e arte
Depois, na década de 70, outro famoso pensador, George Steiner , com “In Bluebeard’s Castle – Some notes towards the re-definition of Culture” (Steiner, 1971) comenta a obra de Elliot, recupera algumas ideias mas questiona a ideia da recuperação de uma cultura cristã como resposta, apontado causas para a o barbarismo. De seguida, explica a posterior inversão de escolhas na cultura ocidental no pós-guerra e aponta caminhos para o futuro, tais como a ciência e a arte.
Jordan Peterson: a ordem e o caos
Mais tarde, no século XXI, talvez fruto das profundas transformações que o nosso mundo tem enfrentado, o Professor e Psicólogo clínico Jordan Peterson, não comentando necessariamente estes autores, retoma esta conversa e repete a queixa de Elliot: estamos a cair numa degenerescência da cultura ocidental, criada e formada por mitos e uma cultura judaico-cristã que ajudou a construir o mundo que conhecemos, a “ordem”, o “logos”, baseada no intelecto, no mérito, na ciência e na arte. Em resumo, Peterson admite que “as pessoas estão desejosas de ouvir um discurso que ligue a responsabilidade ao sentido, pois nos últimos 50 anos a cultura concentrou-se em direitos e privilégios” (Peterson, 2018a). Peterson faz a mesma defesa do legado cultural do mundo ocidental até ao final do século XIX. O cristianismo, tal como Elliot afirma, impediu que o barbarismo avançasse, mas a “morte de Deus” de Nietzsche abriu o mundo para o século do vazio e dos extremismos, o nazismo e o comunismo.
O mundo que deixou de ter valores, nunca pode chegar a bom porto, daí Peterson abordar a dicotomia “Ordem”/ “Caos” (Peterson, 2018b). Há o perigo de o homem canalizar as suas frustrações nas superioridades de raça e também abusar do seu poder com a corrupção do liberalismo selvagem, mas também o caos pode advir de onde menos se espera. Na escuridão da ausência de sentido (cada um cria o seu – tudo é “interpretação”, na senda de Nietzsche), da pressuposição de que todos somos bons e a tolerância será o valor altruísta que salvará tudo. Esses princípios de que um dia acabaria a “luta do homem pelo homem” marxista, levou-nos aos campos de concentração dos Gulag, ao empobrecimento e destruição de todos os países que seguiram esses regimes, do bolchevismo, a Mao Tse Tung e a Pol Pot. Argumenta que hoje em dia o socialismo já não se foca na luta de classes mas em outras causas como as políticas de identidade e multiculturalismo. Defende não é mentindo às pessoas que conseguiremos salvar as suas vidas. Num misto de psicologia humanista e individualismo, o Psicólogo Clínico e Professor Jordan Peterson parece ter eco na população jovem deserdada de sonhos e esperança, a julgar nos milhões de seguidores nas redes sociais, obras publicadas e conferências à volta do mundo. Foi inclusivamente apelidado de “mais influente e mediático pensador do mundo ocidental” pelo New York Times (Brooks, 2018).
Segundo Peterson e os críticos do Pós-Modernismo, existem vários perigos da abordagem globalizada do multiculturalismo, diferente do conceito de interculturalismo. O primeiro conceito admite que não existem identidades nacionais e “shared values” (valores partilhados). Sem “shared values”, como existe uma cultura e união? Numa cultura pressupõe que exista um chão comum de crenças, valores e comportamentos com que se rege uma sociedade. Com o multiculturalismo do pós-modernismo, o qual é criticado por estes autores, existem culturas diferentes sem comunicação e não existem valores partilhados, o que só pode resultar em guerra. A cultura cristã oferece uma visão que tem sentido – baseado no “Logos” ao mesmo tempo que na “Pessoa”, mas é plural e oferece um chão comum humanista que une na diversidade.
Jordan Peterson inspira-se muito no discípulo de Freud, Carl Jung, mas parece também beber muito dos psicólogos da corrente humanista como Carl Rogers e Viktor Frankl, mais concretamente este último, um ex-preso dos campos de concentração nazis e que fundou a logoterapia. Esta prática clínica defende que a forma de encontrar sentido na vida é através da assunção de responsabilidade. A pessoa tem valor e não interessa o que lhe acontece mas o que ela faz com isso, “ser digno do seu sofrimento”, como Frankl cita Dostoievski (Frankl, 2004, p.67). A pessoa pode encontrar sentido mesmo no sofrimento e assim resolver a dor psicológica. É a frase muito repetida por Peterson que resume o seu programa, “se queres mudar o mundo, começa por fazer a tua cama”, afirmado no commencement speach do Almirante William McRaven (McRaven, 2014), o qual teve bastante eco nas mentes dos jovens como um programa de vida. Ao contrário de pintar a vida como uma história cor-de-rosa, assume a sua dureza e aponta um caminho, a coragem e o espírito de sacrifício, tudo valores esquecidos hoje em dia e reprimidos pela “esquerda radical”, segundo Peterson, pois são conotados com a “masculinidade tóxica”, o novo estandarte do socialismo depois da luta de classes, a política de identidade, as questões do género e a desconstrução do conceito de família.
Peterson pode ser o herdeiro mais atual destas batalhas, se bem que vinca com mais acutilância certos temas e não evita as implicações políticas das teorias que apresenta (será o alcance das redes sociais?), mas não é um autor que nasça do nada. Os seus argumentos não são novos, mas consegue ser extremamente eficaz pela inteligência e destreza comunicativa. É polémico, com certeza, de muitas formas.
A solução, então, é voltar aos anos 50?
Posto isto, o que podemos concluir? Tal como defendem estes senhores, devemos voltar aos saudosos anos 50 (ou ao século XIX), antes da desconstrução da cultura tradicional? Há um legado que nos foi deixado ao mundo ocidental, por 3000 anos de história, o qual seria desastroso se o deitássemos fora de todo, pois está à vista que funciona. Mas também há um erro oposto, o do extremismo, o saudosismo anacrónico, aquele que não valoriza as conquistas que o mundo obteve desde a suposta rutura – desde a “morte de Deus” de Nietzsche no final do século XIX – e o pós Segunda Guerra – segundo estes autores.
E a chamada cultura cristã, ainda é cristã? Escândalos como o dos abusos sexuais na Igreja, não têm precedentes na história e são sintoma de grave doença. Tal como algum extremismo religioso evangélico/ protestante, muitas vezes usado como arma política. Afinal, o barbarismo e a degenerescência atingiram os que deviam custodiar essa tradição. Também este “cristianismo” tem de ser purificado. E há um líder que o está a fazer e que é o Papa Francisco, o qual está a voltar às origens do Evangelho e a renovar essa tradição.
“A tradição não é a adulação das cinzas mas a preservação do fogo”, já dizia Gustav Mahler (e citado pelo Papa Francisco) (Francisco, 2019). Esta conceção estática da tradição é um erro comum dos conservadores. Como então fazer a síntese entre este legado cultural e a contemporaneidade? Este parece ser o tema mais interessante a discutir no seguimento das contribuições destes pensadores, ao contrário de saudosismos vetustos do “antigamente é que era”.
Guerra na Ucrânia: mantém-se a questão?
Com a eclosão da guerra na Ucrânia, parece que esta conversa deixou de fazer sentido. Então, afinal, o mundo ocidental não reagiu com firmeza ao mal e ao barbarismo? Em primeiro lugar, sim, é bom verificar que o mundo ocidental se uniu ao redor de valores como a paz e a liberdade. Mas estará ela em paz? Com certeza que não. Grandes divisões culturais nos separam, a afiançar até nas guerras políticas que temos enfrentado. Metade das pessoas nos EUA não são liberais/ democratas; na França, Portugal, Hungria, etc., idem, crescem estes movimentos de contestação da “ordem” liberal. Não podemos, de repente, tornar a demonização dos “populismos” de direita como pensamento único. E tratar milhões de pessoas como se fossem todas estúpidas. Por um lado, muitos destes contestatários são deserdados da globalização, por outro, estão a reagir ao questionar de valores basilares da nossa sociedade por milénios. Também há contestações naturais do lado da esquerda. Há os que contestam a desigualdade entre sexos, o abuso de poder da Igreja com a crise dos abusos sexuais; há também os que contestam o capitalismo selvagem e que também desalojou tantos e depredou o ambiente, adensando desigualdades.
“Queres mudar o mundo, começa por fazer a tua cama”
Na senda do Almirante McRaven, é bom combatermos o nosso inimigo comum – a Rússia e “mudar o mundo”, mas por vezes o nosso adversário pode estar entre nós. Façamos primeiro a nossa “cama”. O barbarismo está à nossa porta, é certo, mas pode ter sido a cola que nos acabou por unir no mundo Ocidental. As divisões, essas, mantêm-se. Esta semana jogou-se a segunda volta das eleições Presidenciais em França, com uma candidata nacionalista como grande oponente do Presidente incumbente, a qual conseguiu comunicar eficazmente as causas que eram da esquerda, a questão social. Aliás, como em Portugal com o Partido Chega, conseguiu integrar em si o anterior eleitorado que pertencia ao PCP e outros.
Em suma, os perigos são os extremismos, como dizia Fukuyama. O mundo ocidental, apesar das conquistas da liberdade, caiu em extremos – de direita e esquerda – na última metade do século e recentemente – o capitalismo selvagem com o resultado nas crises financeiras, no multiculturalismo que causou guerras culturais e étnicas, na desconstrução do conceito de família, nos nacionalismos que excluem, no fanatismo religioso, no abuso de poder masculino, na política de identidade de género, a descrença/ desconstrução da ciência (vacinas e identidade de género), para nomear apenas algumas.
O Cristianismo tem esta coisa maravilhosa e que a distingue de uma religião de castas ou sangues: “Não há judeu, nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher” (Gál. 3:28). Todos os homens e mulheres nascem com a mesma dignidade e valor. A universalidade da cultura cristã pode ter sido um dos fatores que a manteve sólida e viva por dois milénios. Não negando a sua matriz, aceita inculturações das mais variadas. Assim foram criados projetos como a Europa e se fundaram democracias como a americana.
Creio que um caminho possível está no discernimento sábio de olhar para o futuro, não esquecendo a riqueza da tradição ocidental. O caminho poderá estar, na senda de de Peterson, na união da ordem (tradição) com o caos (a mudança) – o yin e yang – que, como num casamento harmonioso, existirão os verdadeiros frutos (Peterson, 2018b; Peterson, 2021). É fácil falar, difícil fazer. Creio que, na senda dos grandes autores que cito, não devemos negar a nossa identidade e património de ocidentais, aperfeiçoando-o e renovando-o sabiamente à luz dos novos tempos.
Palmela, 21 de Abril de 2022.
Referências:
Brooks, D. (2018, Jan 26). The Jordan Peterson Moment. The New York Times, p.23.
Elliot, T.S. (1948). Notes towards the Definition of Culture. Faber & Faber.
Francisco. (2019, Junho), Carta ao Povo de Deus que peregrina na Alemanha, 9.
Frankl, V. E. (2004). Em Busca de Sentido (19ª Ed.). Vozes.
Fukuyama, F. (2022, Março, 19). A guerra de Putin à ordem liberal. Expresso.
McRaven, W.H. (2014, May 19). University of Texas at Austin 2014 Commencement Address – Admiral William H. McRaven. Youtube.
Peterson, J. (2018a, Oct 30). Jordan Peterson: “There was plenty of motivation to take me out. It just didn’t work” | British GQ. Youtube.
Peterson, J. (2018b). 12 Regras para a vida – Um antídoto para o caos. Lua de Papel.
Peterson, J. (2021). Para além da Ordem: 12 novas regras para a vida”. Lua de Papel.
Steiner, G. (1971). In Bluebeard’s Castle – Some notes towards the re-definition of Culture, Faber & Faber.