Observava uma fogueira da festa de São João, quando, sem pensar muito, perguntei a uma amiga: você preferia morrer queimada ou afogada? É curioso. São poucas as pessoas capazes de refletir e responder a uma pergunta desse gênero de forma lógica, em vez de simplesmente gritar “que horror, quem é que pensa numa coisa dessas?”.

Minha amiga preferia claramente morrer afogada, não pensou duas vezes para dar sua resposta. Eu, por minha vez, já não tenho lá muita certeza. Imagino que o fogo nos faça desmaiar mais rapidamente, mas é tudo especulação. Não faço ideia do que estou dizendo.

O fato é que volta e meia me pergunto qual seria a morte ideal. A mais serena, a tal boa morte que a vida reserva só a uns poucos. Há quem diga que a boa morte é aquela que acontece enquanto a pessoa dorme – no entanto, há religiões que dizem que o espírito não consegue entender o que houve e leva muito mais tempo para se resignar às novas condições.

Eu e uma das minhas melhores amigas perdemos nossos pais com quatro dias de intervalo. Meu pai numa morte repentina e sem aviso. O pai dela numa morte avisada com muitos anos de antecedência. Eu não tive tempo de me despedir. Ela teve. Eu não vi meu pai sofrer. Ela viu. Eu não apresentei netos ao meu pai. Ela apresentou. Eu não vi meu pai perder qualidade de vida. Ela viu. Qual é a boa morte? Não sabemos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Se me perguntarem se eu preferia ter meu pai por mais alguns anos, assistindo-o adoecer e tornar-se frágil em vez de perdê-lo de repente, eu responderia que não. Que foi melhor assim. Que ele merecia não sofrer. Se perguntassem a ela se ela abriria mão dos últimos anos com o pai, impedindo-o de estar em seu casamento e de ver nascer a sua filha, mas evitando suas sessões de quimio e radioterapia, também acho que ela responderia que não. Que foi melhor assim. Que o sofrimento valeu a pena para viver também as coisas boas.

Não há resposta exata. É melhor morrer virgem de enfarto ou morrer de uma doença sexualmente transmissível, tendo vivido noites incríveis? É melhor morrer num acidente aéreo voltando de uma linda viagem ou é melhor morrer atropelado em sua cidade natal? É melhor morrer assassinado num assalto ao seu Porsche ou morrer eletrocutado ao atravessar a linha do trem? É melhor morrer asfixiado ou morrer do coração atrás de uma tela de computador, fazendo comentários de ódio contra colunistas de jornal? Talvez essa também seja uma espécie de asfixia.

Sempre me lembro do Gilberto Gil cantando que não tem medo da morte, que tem medo é de morrer, porque a morte já é depois, mas morrer ainda é aqui. É uma última manobra em vida, a cena final do espetáculo. Há mortes que vangloriam existências. Há mortes que ofuscam belas histórias.

Me convenço que a conversa essencial não é sobre a morte, mas sim sobre a vida. Existe um ato final, de fato, que pode ser mais ou menos angustiante ou dolorido. Mas a grande questão que se coloca é sobre aquilo que se deixa. O filho que se criou. Os amores que se viveu. As conquistas realizadas. A porta pela qual se sai talvez não seja tão relevante. O que importa mais é o que você deixa sobre a sua cama. Uns deixam livros e plantas. Outros deixam amores e frutas frescas. Alguns deixam caixas de congelados com restos de comida e maços de cigarro. Outros deixam o tal computador aberto com mensagens de ódio e uma xícara suja de café. Muitos não deixam nada.

Não há morte ideal – nem há morte justa. Assim como não há vida ideal – e quase não há vidas justas. Mas Séneca já dizia que só se apavoram com a morte aqueles que perderam muito tempo em vida. Uma árvore saudável aproveita seu último dia de sol. Um arbusto cheio de larvas ainda precisaria de muito tempo para se regenerar. Talvez a morte ideal não seja nada além de qualquer uma que venha depois de uma vida vivida com algum sentido.