Causou alguma surpresa — e gerou legítima controvérsia — a súbita declaração de apoio do Primeiro-Ministro a uma recandidatura do Presidente da República, antes mesmo da formalização dessa recandidatura pelo próprio Presidente. Muito tem sido escrito e dito sobre o tema, e receio não ter conseguido acompanhar toda essa literatura. Mas alguns pontos muito simples podem talvez ser sugeridos.

Em primeiro lugar, não se trata de uma originalidade. Em 1991, o Primeiro-Ministro social-democrata Cavaco Silva (detentor de uma maioria absoluta no Parlamento) apoiou a recandidatura do Presidente socialista Mário Soares (ainda que só o tenha feito depois de o Presidente ter anunciado a sua recandidatura). Não temos por isso hoje propriamente uma inovação. Trata-se apenas de um fenómeno até certo ponto simétrico ao que tivemos em 1991: o actual Primeiro-Ministro socialista (sem maioria absoluta)  apoia a recandidatura de um Presidente social-democrata. (A  inovação reside sobretudo no facto algo peculiar de esse apoio ser anunciado antes do anúncio formal da recandidatura do Presidente).

Como deve ser avaliada esta repetição de um apoio de um Primeiro-Ministro de uma área política específica à recandidatura de um Presidente da República oriundo de uma área política específica rival? Julgo que é um sinal muito positivo (tal como achei em 1991, quando aliás tinha sido assessor político do Presidente Mário Soares no seu primeiro mandato).

A questão decisiva prende-se com o papel que cabe ao Presidente da República no nosso sistema político. Como Mário Soares insistiu repetidamente ao longo do seu primeiro mandato (embora não necessariamente no segundo), o papel do Presidente é sobretudo o de um poder moderador, de garante das regras do jogo democrático, e não o de líder de uma facção contra outra. Foi por isso que Mário Soares declarou, logo na noite da primeira eleição, em 1986, que a maioria que o elegera estava nesse mesmo momento dissolvida e que ele era Presidente de todos os Portugueses — não o Presidente da chamada esquerda contra a chamada direita.

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Pode ser dito (como foi na altura dito pela ala esquerda dos socialistas) que esta é uma interpretação monárquica do papel do Presidente. Pode ser que seja, e eu pessoalmente nunca fiquei preocupado com esse tipo de acusações por parte das ortodoxias republicanas. A questão crucial é que a nossa Constituição prevê um poder moderador no Presidente da República — e que esse poder moderador é fundamental para garantir o normal funcionamento das instituições democráticas.

Por outras palavras, a nossa Constituição não define o Presidente da República como líder de uma facção, mas como poder moderador acima das facções — que garante as regras da concorrência leal entre as legítimas e necessárias facções, isto é, a rivalidade pacífica e civilizada entre os partidos políticos no Parlamento, bem como a autonomia e o pluralismo da sociedade civil em geral.

Acontece que as inúmeras críticas, (bem como alguns ataques mal-educados), que à direita têm sido dirigidas ao actual Presidente não se dirigem ao seu comportamento como árbitro. A maior parte das queixas acusam-no de não ter defendido a chamada ‘direita’. Trata-se, em meu entender, de uma flagrante dissonância cognitiva.

Em primeiro lugar, porque acusar um Presidente oriundo do centro-direita de não ter sido porta-voz do sector que o elegeu é, em rigor, um elogio. Tal como Mário Soares no seu primeiro mandato (infelizmente não no segundo) e Cavaco Silva nos seus dois mandatos presidenciais exemplares, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido o Presidente de todos os Portugueses, não de uma facção contra outra.

Em segundo lugar, porque as queixas que algumas vozes à direita dirigem contra o Presidente deveriam em bom rigor ser dirigidas aos partidos do centro-direita — PSD e CDS. São estes partidos que têm visto declinar a sua voz autónoma na vida política nacional — o que fica patente na debilidade das suas propostas alternativas ao socialismo, bem como nas preocupantes tendências descendentes reveladas em sondagens recorrentes.

Uma possível ideia interessante para o renascimento do centro-direita poderia talvez consistir no contrário do que tem acontecido: em vez de criticar o Presidente, ou de continuar em silêncio sobre o apoio à sua recandidatura, talvez o centro-direita pudesse retomar a iniciativa expressando um vigoroso apelo à recandidatura do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Poderia então ser sublinhada a imparcialidade de um Presidente oriundo do centro-direita, em contraste com alguma voragem estatista e controladora da esquerda socialista e sobretudo bloquista e comunista.

In Memoriam: Carlos Barroso. Recebi com tristeza a notícia da morte de Carlos Barroso, sobrinho de Maria Barroso e secretário-geral fundador da Fundação Mário Soares. Conheci-o em 1996, no lançamento da Fundação Mário Soares, quando tive o privilégio de coordenar a série de conferências ‘A Invenção Democrática’ que inaugurou a Fundação. Não mantivemos relações estreitas depois dessa colaboração inicial. Mas fiquei para sempre marcado pela sua robustez de carácter, pela sua educação, e sobretudo pela sua dedicação aos ideias da democracia liberal pluralista — tão exemplarmente defendidos por Mário Soares contra o autoritarismo salazarista e contra o PREC comunista.