O problema é que eu me lembro de tudo: o dia absurdamente quente, o céu vermelho sobre o fim de tarde em Lisboa, a chuva repentina que pôs a multidão a correr pela Feira do Livro abaixo, em chinelos e calções, ou a abrigar-se debaixo dos raros guarda-sóis, subitamente feitos guarda-chuva, das mesas dos autores em sessão de autógrafos. Dali a pouco, a notícia: Pedrógão, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, ardiam. 64 pessoas morriam consumidas pelas chamas, a maioria no interior dos carros, quando tentavam fugir a um inferno para o qual ninguém parecia preparado.

Lembro-me de tudo e não estava lá. Não perdi ninguém, não perdi nada – excepto o que restava de fé no Estado, no meu país, nos partidos ditos “da governação”.

Em 2017, bem entrados no século XXI, tínhamos deixado um conjunto de populações à sua sorte, entregues a um “Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança” que colapsara. Um Sistema a quem pagávamos quase 500 milhões de euros por ano, negociado por Santana Lopes e fechado por António Costa, com um consórcio formado por entidades como a Sociedade Lusa de Negócios e a PT, e que não tinha, contratualmente, a obrigação de funcionar em casos de urgência.

Em pânico, sem ter quem lhes acudisse, as populações puseram-se em fuga numa situação de, literalmente, salve-se quem puder, como se não estivéssemos num país europeu do primeiro mundo, mas abandonados na selva mais primordial, enviadas para a morte na estrada que lhes fora indicada como caminho de fuga pela própria GNR.

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Este desastre em toda a linha, este colapso do próprio Estado a que mesmo António Costa chamou, a dado passo, “a maior tragédia em termos de vidas humanas dos últimos anos”, tinha hora marcada para a inauguração de um memorial às vítimas, no sexto aniversário dos acontecimentos. Mas António Costa não apareceu. Não apareceu ninguém do Governo. Não apareceu, ao menos, Marcelo.

Um memorial, dirão, não serve para nada. É um daqueles gestos com que os responsáveis políticos lavam a consciência. É o mínimo que podem fazer, um ritual de respeito e homenagem que, não mudando nada, tal como aparecer ou não aparecer a um funeral não traz ninguém de volta, faz toda a diferença para quem está, para quem fica, para quem teve de continuar. Os políticos aparecem, põem um ar sério e garantem que nunca mais se vão esquecer. É só isso que têm de fazer. Mas nem isso estes fizeram. Esqueceram-se. Não apareceram. Não estiveram lá. Falharam outra vez. Exactamente como há seis anos.

O problema não é Costa ir ver jogos de bola ao lado de Viktor Orbán, nem Portugais-Bósnia, nem usar Falcons para viagens que não constam da agenda oficial. Mas o problema já se intui nas idas aos concertos de Coldplay quando todo o seu governo está em questão em trapalhadas que envolvem potenciais mentiras de ministros, agressões em ministérios, acusações de roubo a funcionários desse mesmo governo e intervenções potencialmente ilegais dos serviços de segurança da República. O problema é a leviandade.

O problema nem é, portanto, a falta de memória do senhor primeiro-ministro; é a falta de vergonha. É a arrogância de achar que nós não nos lembramos. Não nos lembramos que foi de férias uns dias depois de Pedrógão e de um focus group que mandou fazer para avaliar se a popularidade do governo tinha ou não saído beliscada pelo desastre. Que teve a frieza de pensar nisto quando o país, literalmente, ardia. Que foi de férias talvez a pensar se devia mesmo ter mudado metade das chefias da Proteção Civil dois meses antes da tragédia, para lá pôr, entre outros, mais uns camaradas de partido. Que ficou a dúvida sobre se, nos cortes que fez ao contrato com o SIRESP, não estavam as comunicações via satélite, deixando-nos entregues às estações no terreno que, obviamente, ardem como tudo o resto, porque o fogo não faz uma pausa civilizada para deixar passar os cabos de fibra óptica. Que, ainda hoje, haja pessoas sem casa nas localidades afectadas. Que outras tenham morrido sem a casa que lhes prometeram de mãos postas que reconstruiriam. Que houve autarcas acusados de terem desviado para os próprios bolsos o dinheiro que os portugueses enviaram para a reconstrução.

O problema é que nós não nos esquecemos nem podemos esquecer, até porque começa hoje nova vaga de calor e, seis anos depois, tudo em Portugal costuma estar prontíssimo para voltar a arder.

António Costa diz agora que vai inaugurar o monumento, 15 dias depois. Agora não é preciso, senhor primeiro-ministro, obrigadinho. Já lá está o monumento exactamente como deveria estar: um memorial ao esquecimento. À indiferença.