Sim. Também eu preferia que, em vez do “Doutor Nuno Rebelo de Sousa” e da “Doutora Maria João Ruela”, o senhor Presidente da República tivesse dito “o meu filho” e “a minha assessora”. Não precisava disso para nos tentar convencer de que tudo, no caso do alegado favorecimento no tratamento dado às gémeas luso-brasileiras, lhe foi completamente alheio e feito por terceiros. Assim, soou apenas a sacudir a água do capote, além de confirmar que um assessor só ouve o seu nome nas notícias no dia em que houver asneira. Ossos do ofício.
E, no entanto, acredito mesmo que Marcelo não tenha tido mais intervenção no episódio do que aquela que, minuciosamente, relatou. Primeiro, porque a sua versão é coerente e credível: com datas, nomes, pormenores, contexto. Toda a gente imagina que Marcelo receba milhares de pedidos de ajuda para tudo e mais alguma, incluindo de familiares, amigos, amigos de amigos, vagamente conhecidos e desconhecidos totais. Há-de encaminhar uns tantos e ignorar outros, uns chegam ao destino, outros não; uns têm sucesso, outros coisa nenhuma. Dispensava-se o lapso de memória quanto ao email original do filho, pedindo ajuda para as filhas duns amigos do Brasil, que tinham um gravíssimo problema de saúde? Dispensava. Mas não estamos a falar exactamente da amnésia total de Zeinal Bava quanto a anos de gestão da PT, nem do whatsapp que Pedro Nuno Santos não se lembrava de ter mandado a autorizar o despedimento e a indemnização de meio milhão a Alexandra Reis. Em princípio, não despede administradoras de empresas públicas todos os dias nem tem a idade de Marcelo para se desculpar com falhas de memória.
Mas o que faz mesmo crer que a história é verdadeira é porque o contrário não teria sentido algum. Alguém acredita que Marcelo ia arriscar tudo – credibilidade, reputação, reeleição – para fazer passar à frente de crianças e pais portugueses as filhas de uns amigos do filho do Brasil? Notem: não para sacar um favor em benefício próprio, não para o filho, não para as netas. O homem mais conhecido do país depois de Cristiano Ronaldo, experiente e hábil como é, ia pegar num telefone ou num email e mandar dizer ao hospital de Santa Maria, que não têm condições nem para manter as urgências abertas a toda a gente, “passem estas pessoas à frente de toda a gente porque são filhas duns amigos dum filho meu”? E acharia o quê? Que ninguém ia contar nada a ninguém? Que não se ia saber? Que não ia dar um escândalo de todo o tamanho? Caramba. O maior detractor de Marcelo dirá tudo acerca dele, menos que é ingénuo.
O que não quer dizer que não tenha havido favorecimento – por causa de Marcelo, mesmo que sem Marcelo. Como, se calhar, também em Sines, é justo admitir, alguém possa ter dito “isto é para o primeiro-ministro”, mesmo sem primeiro-ministro.
A partir do momento em que o hospital de Santa Maria foi contactado pela Presidência da República e respondeu, segundo o chefe da Casa Civil, que a prioridade era “dada aos casos que estão a ser tratados nos hospitais portugueses, daí que [os pais das gémeas brasileiras] ainda não tenham sido contactados, nem é previsível que o sejam rapidamente. O SNS cobre em primeiro lugar os residentes em Portugal”, algo aconteceu para que o processo andasse para a frente na mesma. Note-se: a Presidência não disse que não perguntou; reconheceu que perguntou, só que ouviu um não. Depois – depois – é o gato foi às filhós: alguém conseguiu um sim. Aliás, muitos sins, dados por muitos alguéns. Alguém que ligou ou escreveu ou bateu à porta, à margem dos circuitos de comunicação, e que terá dito: “olhe que isto é para o filho do Presidente”.
Quem? Não sabemos. Talvez o próprio filho do Presidente, talvez um solícito responsável no Ministério da Saúde, tão preocupado em agradar a Belém como o adjunto de Pedro Nuno que queria mudar de dia um avião da TAP cheio de passageiros, só para arranjar lugar para “o principal aliado” do governo.
A seguir, vieram os yes men. Em cadeia. Os que disseram “sim, vamos naturalizar as crianças em tempo recorde”; os que disseram “sim, vamos oferecer-lhes um medicamento de dois milhões de euros”, “sim, claro, vezes duas”; os que disseram “sim, vamos dar-lhes duas cadeiras de rodas especiais”, e depois mais duas, e mais duas, e mais dois andarilhos, em que só estes pares de cadeiras e andarilhos custaram 60 mil euros e nem foram levantados, numa sucessão patética de assinaturazinhas em papelinhos, num país já sem dinheiro ou organização sequer para garantir que todas as mulheres podem dar à luz os seus filhos em segurança, perto de casa.
Porque, lamentavelmente, continuamos a viver no Portugal do respeitinho, da cunha, do pequeno poder, do sonso, do intermediário. Do que nem tem nada a ganhar, mas faz só para agradar ao chefe, que, por sua vez, dá ordem só para se fazer importante. Só por isso é que foi possível viver na mais longa ditadura da Europa do século XX sem grande estrilho. Só por isso é que a nossa jovem democracia já entrou na menopausa e ninguém deu por nada.
Porque vivemos num país onde nem é preciso ninguém mandar; basta que a maioria obedeça.
Porque vivemos nesse país simultaneamente ternurento onde um Presidente pode cair não por um escândalo envolvendo um desvio de milhões para a sua conta, mas para tentar salvar a vida a duas crianças. Um país onde um Presidente pode cair por um escândalo envolvendo duas gémeas, mas nenhuma festa privada ou quarto de hotel. Onde um Presidente pode cair por um escândalo envolvendo “o medicamento mais caro do mundo”, no país que, justamente, mais delira em ter os “maiores do mundo”, do futebolista à feijoada, mesmo que tudo o resto seja pequenino e à míngua.
Infelizmente, Marcelo não pode mandar dissolver o filho. Mas deve andar a tentar perceber como é que, afinal, os Távoras voltaram à vida para fritar em lume alto o Marquês.