“O primeiro passo para liquidar um povo é apagar a sua memória. Destruir os seus livros, a sua cultura, a sua história. Então, tenha alguém a escrever novos livros, fabricando uma nova cultura, inventando uma nova história. Muito antes a nação começará a esquecer o que ela é e o que ela era. O mundo em volta esquecerá ainda mais rápido. A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.”
in O Livro do Riso e do Esquecimento, MilanKundera
Seja a premonição desconcertante de contadores de histórias exímios ou uma simples revisita histórica ao passado da China de Mao e da sua Revolução Cultural, ambas dão a sensação de uma espécie de epifania em modo “dejá vu” sobre a realidade que invade passo a passo o Ocidente.
A aparição, propagação e predominância de narrativas demonizadoras que advogam a necessidade de expiação dos pecados de países com passado colonial, inserida na ideia de “memória histórica”, não surgiu no debate público por mera coincidência. Afinal, para manter a sua relevância política, a extrema-esquerda especializou-se na procura e instrumentalização de “oprimidos” a inserir na sua metanarrativa marxista de jogos de poder; esta, propositadamente simplificada num revisionismo histórico anacrónico e maniqueísmo obscenos. Afinal, quanto mais simplificada a mensagem mais facilmente será interiorizada.
A propagação desta visão do mundo como realidade absoluta, não passa de um meio desesperado e cíclico para a este nicho político preencher e o vazio de tudo aquilo que tem para oferecer: a chama da revolução acesa, rumo à terra prometida da Utopia.
Os intelectuais das ciências sociais, inseridos na academia, juntamente com os ativistas, onde estes utópicos revolucionários estão desproporcionalmente representados e cujas vozes são amplificadas nos meios de comunicação social, são o combustível da revolução.
Há um ano atrás, foi a legitimação ou relativização do derrube e vandalismo de estátuas por parte de movimentos “antirracistas” e necessidade de revisão das narrativas e figuras da história ocidental; afinal, nada evoca mais “antirracismo” e “anti-violência policial” do que vandalizar memoriais e estátuas de abolicionistas como Lincoln e Matthias Baldwin ou grafitar a foice e o martelo na estátua de Robert Peel, cujo legado teórico desenvolveu as bases para uma força policial ética. Há duas semanas era Marcelino da Mata, o cadáver ainda mal arrefecia e já eram proferidas acusações de “traidor” ou “criminoso de guerra” (sem necessidade de comprovação) juntamente com o típico e seletivo rasgar de vestes. Na terça feira foi a discussão de monumentos históricos e arranjos florais, como símbolos de opressão no Programa de debate da RTP – “É ou não é?” (uma nota: a desproporcional representatividade de um dos lados neste debate é uma amostra elucidativa sobre quem tem o monopólio de transmissão de ideias no espaço público).
Transcrevendo duas das intervenções de dois dos intervenientes neste programa:
Professor Francisco Betthencourt: “Eu penso que o colonialismo é sempre algo de violento, é uma violência para as pessoas submetidas ao colonialismo (…) Eu penso que é tempo de ultrapassarmos esse período, estamos no período pós-colonial e o que é importante é que Portugal se envolva neste novo período pós-colonial e não esteja a remexer nostalgicamente nesse passado (…) o que é importante é caminharmos para o futuro (…)”
Mamadou Ba: “(…) Não sou historiador, há pessoas mais qualificadas para falar da questão histórica (…) voltando à questão dos frescos da república e outro tipo de mobiliário, parece-me que quem quer reescrever o passado é quem quer voltar a escrever o passado no presente. Porque a sociedade portuguesa tem uma identidade hoje que é colectiva, diversa, que não é estática, é uma coisa dinâmica. Há pessoas que resultaram desse processo histórico que vivem entre nós e que se sentem agredidas por esta reedificação permanente da história. O que nos compete fazer é perceber se nós estamos disponíveis a olhar para o futuro. Este é o convite que faz o movimento. Não estou aqui para apontar culpas, mas para apontar responsabilidades. A culpa está estabelecida. As vilanias da história não as podemos mudar, mas podemos fazer tudo para que não se repitam e isto é uma responsabilidade colectiva; apostar no futuro. Fazer com que as crianças que nasçam em Portugal se sintam refletidas no imaginário colectivo, na narrativa colectiva. Esse é o nosso compromisso.”
Em suma: “É preciso descolonizar”, dizem-nos de forma subliminar. A necessidade imperativa de uma nova descolonização em tudo diferente mas em tudo igual na sua finalidade de consumar a libertação das minorias alegadamente ainda oprimidas pelo histórico de colonialismo português.
Libertação esta inserida num dualismo:
- no sentido abstrato: mental – reeducar, repensar, redefinir a história e mudar cabeças;
- no sentido objetivo: cultural – remover tudo que estes rabiscadores de pacotilha, (cuja autoridade para espalhar o seu viés sentem legitimada por um simples canudo ou pela importância que lhes é atribuída por quem vive de audiências sensacionalistas) considerem ofensivo.
Relativamente ao sentido abstrato inserido na dicotomia desta nova “descolonização”: o que se pode interpretar na subtilidade da mensagem destes “vanguardistas” históricos é que em detrimento da subjetividade da ofensa, por eles indicada, e em nome do futuro, por eles apontado, importa redefinir o imaginário colectivo, “descolonizar” as mentes “colonizadas” e “colonizadoras” e redefinir a narrativa; assim proclamam os pedagogos na patranha da agenda de reeducação programática. A “memória histórica” é afinal a amnésia induzida nas massas e o redesenho de uma nova história numa folha em branco, na qual os escribas da “intelectualidade” e do “ativismo” exercem o seu papel de juízes e redefinidores do passado, através da sua narrativa totalitária, que se materializa na reeducação das massas.
Relativamente à agenda de “libertação” no sentido objetivo: a existência de monumentos que evocam um passado de influência, de hegemonia política e cultural de Portugal é, segundo estes, uma afronta ofensiva e violenta contra o vanguardismo do homem pós-moderno ou, se assim quisermos entender pelas palavras do Professor Betthencourt, do homem “pós-colonial”… mea culpa: dos homens e mulheres “pós-coloniais”.
Assim, dizem os “juízes” e “escribas”, é importante que se discuta o “sentido” de existência destes símbolos em pleno séc. XXI. Se a discussão e a opinião pública não se inclinar para o lado pretendido pela agenda, é importante que se continue a discutir até se chegar ao resultado pretendido de consumação de “descolonização” do espaço público, através da remoção de qualquer símbolo ou ideia de passado nacional colectivo, que estes iluminados consideram ofensivo e opressivo e, claro está, que não corresponda ao seu ideal de colectivismo contemporâneo.
O futuro é que o conta. A história ficou lá para trás; mas não ficou, porque importa eliminar ideias e conceitos generalizadamente aceites como acertados (p.e: “comunismo é mau”, “Portugal deu novos mundos ao mundo”) e redefini-los (“isso não foi verdadeiro comunismo”; “Portugal não descobriu nenhum país, porque não se pode descobrir um país que já tinha gente lá”). Através desta renovação da história, pode então moldar-se o presente e avançar para o futuro, por estes “pretendido”.
Milan Kundera elucidou como se faz uma nova história, Orwell já tinha avisado como se ganha o controlo: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado” – in 1984.
Importa por isso avançar a agenda rumo à revolução cultural moderna, esta mais discreta e sem instigação concreta à violência física (matar o homem branco era claro no sentido figurado de Fannon), mas também ela demonizadora dos seus opositores (facilmente catalogados de “saudosistas nostálgicos do império colonial”, “salazaristas”, “fascistas” ou perpetuadores de uma cultura de “supremacia branca).
Importa portanto, rever e depois apagar, importa não olhar mais para trás com os mesmos olhos contextuais de sempre, mas com outros que os novos “juízes” da história julguem os corretos, para interpretar a história e o mundo e, finalmente, poder auspiciar um novo amanhã. O amanhã é naturalmente destes escribas históricos, pois a história, a sociedade e as ideias são cada vez mais monopólios seus, pelo que só estes saberão o que estará na agenda do dia; mas irá com toda a certeza existir algo, porque há sempre espaço para instigadores e simplificadores políticos. Afinal de contas, tudo se justifica para se poder seguir em direção ao progresso, rumo ao futuro distópico da “terra prometida”. Futuro este, nada auspicioso, porque uma sociedade que se divide entre a apatia das massas, que se submete à capitulação, ao sentimento de culpa e vergonha instigado pela visão anacrónica destes escribas históricos e radicais políticos e entre reacionarismos perniciosos, que pedem extradição de adversários políticos, está condenada a perecer.