No próximo domingo, Espanha vai a votos. O aumento do interesse pelas eleições espanholas em Portugal parece-me ser claramente motivado pela “questão da extrema-direita”. Muitos querem saber se o PP se aliará ao Vox e, se tal ocorrer, como transpor para a luta política nacional e para um eventual acordo PSD-Chega a coligação das direitas espanholas. Como quase sempre, muito poucos estão verdadeiramente interessados em Espanha. Estão simplesmente a usar o conflito político espanhol como analogia para as posições que querem defender em Portugal.

Aos que questionam se PP e Vox se coligarão, a resposta é simples: tudo o que sabemos sobre política Europeia ao longo das últimas três décadas nos faz concluir que, caso os votos do Vox sejam necessários e suficientes para formar uma maioria com o PP, este último não hesitará em fazê-lo. Como já escrevi aqui, foi isso que aconteceu em toda a Europa continental, onde a França e a Alemanha são, por razões idiossincráticas, a excepção e não a regra. Obviamente, não me dedico a previsões deterministas do futuro, mas essa é a probabilidade: caso as condições sejam as que afirmei, não vejo razões idiossincráticas que tornem Espanha uma excepção à regra.

Pelo contrário, Espanha é, no contexto europeu, um país onde os dois blocos políticos estão extremamente bem definidos e são aguerridos, sem problemas em afirmar posições que muitas vezes seriam consideradas extremistas em Portugal. No século XX, Espanha dividiu-se quase exactamente ao meio, como poucos países Europeus, para um confronto das duas grandes ideologias do século, onde nenhum dos lados teve problema em defender as suas convicções de forma combativa. Também hoje, dentro das regras democráticas, que impregnam o jogo de alguma moderação, o pluralismo de cores e ideologias políticas faz-se sem tabus, e o PP tem, na verdade, uma distância ideológica ao Vox muito inferior à do PSD ao Chega. A polarização entre blocos políticos, que agora se diz afectiva, é, em Espanha, das mais elevadas da Europa.

Mas as comparações entre ambos os países, exceptuando em âmbitos muito bem delimitados, não têm sentido. O Chega e o Vox são muito pouco comparáveis nas suas bases sociológicas e nas suas batalhas ideológicas. Politicamente, Espanha e Portugal não poderiam ser mais diferentes. Por isso, quem deseja fazer combate político em Portugal, dedique-se, por favor, a utilizar o contexto nacional, bem como os problemas que têm sentido discutir em Portugal.

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Em Espanha, a fluidez do sistema partidário e a sua capacidade de inovação são muito maiores que em Portugal. Lembremo-nos que, em 2015, depois de ambos os países passarem por crises económicas e sociais muito profundas e invulgares no contexto democrático moderno, ambos foram a votos. Em Espanha, PP e PSOE, os partidos dominantes nas décadas anteriores, tiveram 50.7% dos votos, com vários novos partidos a aparecer e mobilizar muitos votos. Em Portugal, PSD e PS, em 2015, conseguiram 70.8% dos votos, sem nenhuma alteração significativa do sistema partidário (as alterações só vieram verdadeiramente mais tarde). Em Espanha, partidos, coligações e plataformas nascem e morrem, entram e saem do parlamento com uma fluidez muito superior à inércia do sistema português. A tradução de conflitos, descontentamentos e identidades sociais em partidos e movimentos políticos é muito mais ágil. Disso surgem aspectos positivos, como uma certa salubridade do ponto de vista democrático e da representação, mas também coisas negativas como dificuldade de governação, instabilidade ou extremismos.

Em segundo lugar, Espanha é um país inevitavelmente mais fragmentado que Portugal. Portugal tem a dimensão de uma região de Espanha. Não sendo a dimensão algo determinista, certamente que aumenta a probabilidade de termos de lidar com um número e porventura intensidade de conflitos sociais maior. O resultado desta efervescência e desta complexidade multidimensional é um parlamento muito fragmentado e, como tal, a prevalência de governos minoritários. Na verdade, Espanha é dos países da Europa com maior frequência de governos minoritários (cerca de 66%, 10 dos 15 governos desde a democratização). E, historicamente, até Pedro Sánchez, estes governos minoritários eram de partido único.

A particularidade dos governos minoritários espanhóis reside no papel e na força que dão os partidos regionalistas. Há várias décadas que muitos partidos regionalistas — nem todos são independentistas, alguns desejam apenas mais autonomia e outros mais benefícios para as suas regiões dentro do sistema actual — ocupam frequentemente mais de 30 lugares no Congresso dos Deputados nacional, ou cerca de 10% dos lugares. Por exemplo, na legislatura que agora terminou, 10 partidos de âmbito regional ocuparam 41 lugares no Congresso, para além dos partidos nacionais. Em cenários semelhantes, ao longo das últimas décadas, para conseguir uma maioria de 176, o partido mais votado, caso estivesse em minoria, formava governo e poderia simplesmente negociar com alguns destes partidos. E, na verdade, foi isso que sempre aconteceu.

Antes de Sánchez ter negociado com o EH Bildu, uma linha vermelha para a velha elite socialista, quase todos os outros primeiros-ministros espanhóis haviam feito acordos com outros partidos regionais. Gonzaléz, Aznar, Zapatero e Rajoy, nos seus governos minoritários, apoiaram-se nos votos no Congresso de vários partidos regionais, mais frequentemente a Convergência e União (CiU) da Catalunha, a Coligação das Canárias (CC) e o Partido Nacionalista Basco (PNV), mas também a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) ou o Bloco Nacionalista Galego (BNG).

O bipartidismo muito imperfeito, quer ao nível nacional (onde sempre existiram partidos de âmbito nacional à esquerda e à direita do PSOE e do PP), quer ao nível regional, com uma panóplia de partidos regionais adicionais que também competem ao nível nacional, resultou num número elevado de governos minoritários, que por sua vez tiveram sempre de pagar um preço. Em troca do apoio parlamentar de partidos regionais, estes nunca estiveram interessados em ocupar ministérios. Ao invés, o governo nacional deu quase sempre duas coisas: ao nível nacional, concessões de políticas públicas a favor dos interesses regionais desses partidos e, ao nível dos governos regionais, onde muitas vezes esses partidos regionais lideravam e ocupavam cargos executivos, a secção regional do partido PSOE ou PP facilitava a governação e fazia entendimentos com os partidos regionais. Claro que, ao fim de quatro décadas, este sistema resultou numa devolução inexorável e muito elevada de poder e de várias funções do Estado do nível nacional para o nível regional. Os partidos regionais querem naturalmente mais poderes se governam ou dominam nas suas regiões. Mas, para além disso, penso que este apoio constante em pequenos partidos regionais também aumentou artificialmente o seu poder e a sua sobrevivência política.

O processo de nacionalização da política que ocorreu na maioria dos países europeus ao longo dos séculos XIX e XX, baseado na homogeneização da oferta política nos territórios nacionais e na mobilização de clivagens funcionais esquerda-direita, transversais a clivagens espaciais e regionais, nunca se completou em Espanha. Sendo certo que houve uma democratização tardia, a sobrevivência das clivagens regionais com a força das existentes em Espanha não foi uma inevitabilidade histórica, mas deve-se, a meu ver, a decisões e modos de fazer política que as elites políticas espanholas escolheram trilhar.

Numa situação em que governos minoritários se baseiam constantemente em acordos com pequenos partidos regionais, as elites regionais têm incentivos para continuar a criar e a alimentar os seus próprios partidos para extrair mais concessões do governo central. Mais, entre partidos da mesma região, as elites regionais têm incentivos para competirem entre si: quem apresenta a proposta mais regionalista, que mais defende os interesses da região? De certa forma, este estado das coisas prolongou e insuflou os conflitos centro-periferia na política, ao invés de os resolver e fazer desvanecer. A importância e saliência dos temas e conflitos entre regiões e estado central, para além dos conflitos já existentes nas dimensões clássicas esquerda-direita na economia e na sociedade, é assim acentuada na política nacional.

Na verdade, se é frequente ouvirmos falar em diversidade de identidades regionais para justificar a importância do tema na política Espanhola, esta está longe, só por si, de gerar automaticamente conflitos políticos tão acentuados. Não há qualquer determinismo na tradução de uma identidade cultural para uma identidade política e a autodeterminação cultural não implica necessariamente autodeterminação, autonomia ou independência política institucional. Assim, os conflitos centro-periferia não são apenas sobre identidades, são também – e atrevo-me a dizer, principalmente – sobre estratégia política de elites regionais e de elites nacionais que escolhem mobilizar este assunto como forma de poder. Não há nada de automático ou inevitável na Crise Catalã de 2017 e, em resposta, na mobilização de uma identidade espanhola una e nacional através do Vox. Ambos são produto, em grande medida, de elites políticas que escolheram preservar o conflito centro-periferia para seu próprio benefício.

Nas eleições de Domingo, o cenário mais provável à hora que escrevo é que nenhum dos dois grandes blocos – nem PSOE com Sumar nem PP com Vox – consiga maioria sozinho. Também é provável, num outro cenário, que o PP tenha um resultado próximo o suficiente dos 176 para que lhe seja suficiente fazer acordos com partidos regionais para governar em vez de lidar com as ambições, ideológicas e ministeriais do Vox, que ainda por cima é inexperiente politicamente. Se esta segunda opção se verificar, penso ser mais fácil, baseado em comportamentos passados, que o PP negoceie com estes partidos regionais.

Espanha fica, assim, presa a esta dinâmica e conflito. Como já escrevi aqui, cuidado com a clivagem que desejam mobilizar pois esta gerará sempre uma reacção. Quem deseja mobilizar uma identidade nacional e una terá uma reacção de quem valoriza a diversidade (regional ou outra). Quem deseja mobilizar uma identidade sub-nacional própria e se demarca do resto da nação, terá inevitavelmente uma reacção por parte de quem quer preservar a identidade nacional com a qual se identifica afectiva e primariamente. Mais, as elites que quem quer batalhar sobre que poderes se dividem entre estado central e regiões tem de estar preparadas para que o outro lado tome o poder e implemente a sua visão das coisas.

Porventura seria relativamente inevitável que uma democracia pluralista num país com a história de Espanha resultasse nisto. Todavia, quero acreditar que não. Quero acreditar que é perfeitamente possível autodeterminação cultural dentro de um estado-nação, num mundo globalista e cosmopolita, de forma mais equilibrada. David Marquand afirmou em tempos que a criação de uma cidadania Europeia só seria possível se transformássemos uma Europa das pátrias numa Europa dos partidos transnacionais. Hoje, parece-me certo afirmar que uma cidadania positiva e multidimensional Espanhola só será possível quando a Espanha das regiões der lugar a uma Espanha das clivagens nacionais, transversais a toda a sociedade.