A propósito do novo filme de Martin Scorsese, assisti a uma troca de palavras nas redes sociais – e aqui faço um parênteses, porque se a troca de palavras tivesse sido na vida real resolvia-se já tudo. Li um humorista criticar ou “ficar chateado” com um crítico de cinema, porque o crítico aparentemente não gostou de um filme de que o humorista tinha gostado. Até aqui tudo bem, pensei eu, “eu gosto, tu não gostas”, embora eu não perceba bem a utilidade de criticar alguém porque não gostou de um filme do qual nós gostámos, isto bem exprimido é um equivalente a “não vales nada porque eu prefiro o sabor a chocolate e tu preferes o sabor a morango”.

Mas pensei com os meus botões, bom, isto não tem mal nenhum, o humorista está no direito de dizer que não gostou da opinião do outro, mas depois, curiosamente, deparei-me com uma crónica recente do humorista, em que o mesmo dava a entender que não se deviam dar opiniões que não tivessem sido pedidas, e cito, “a praga que são as pessoas que dão opiniões sem ninguém lhes pedir (…)”. Fiquei apenas pensativa e ri-me com o facto de parecer, cada vez mais, que todos temos dois pesos e duas medidas para tudo. O próprio do humorista deu uma opinião que não lhe foi pedida, ainda por cima uma opinião que assenta apenas em criticar alguém por não ter gostado de um filme. Mas está no seu direito de a dar, tal como todos estamos, mas porquê chamar “praga” às pessoas que dão opiniões não pedidas, quando todos somos um bocadinho essa “praga”?

E de repente, uma coisa que para mim é tão bela, que é partilhar a magia do cinema, ficou tão insípida, uma simples troca de galhardetes. E pensei como seria muito melhor se o crítico de cinema e o humorista se juntassem num café a discutir alegremente, sem arrogâncias de parte a parte, sobre um filme, um simples filme que suscita sentimentos, reflexões e opiniões estéticas e cinematográficas diferentes em quem o vê.

Não tenho aspiração a ser crítica de cinema nem humorista, e falo disto tudo como quem vê de fora, e como quem chegou ontem do cinema, depois de ter visto o novo filme de Scorsese. Sou uma quase psicóloga e, talvez por defeito da profissão, associo todos os amores e desamores que temos por filmes (ou pessoas) a sentimentos e pensamentos (im)penetráveis que todos temos dentro de nós. Gosto muito mais de pensar assim do que de pensar que uns gostam de uns filmes porque são superiores e outros gostam de outros porque são inferiores. Numa crónica já antiga, de há mais de uma década, o mesmo humorista acusa dois críticos de cinema por não terem gostado de um outro filme, sugerindo que estes deveriam juntar-se numa cave “a resmungar com o que vos impede de ter uma vida sexual”. Talvez o intuito seja pura comicidade, mas em que mundo é que nos passa pela cabeça achar que uma pessoa é uma falhada sexual só por não gostar do mesmo filme que nós? O humorista acrescenta “Ou gostam ou não gostam, estão no vosso direito. Mais do que isso já é masturbação intelectual.” Não tenho estudos suficientes para entender porque é que um humorista, cuja profissão é brincar com opiniões e estados de alma, não gosta que os outros emitam as suas. Estamos todos no direito de explicar porque é que gostamos ou não gostamos de uma coisa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Eu, cuja opinião vale o que vale, que é pouco, como todas, gostei mais dos velhinhos Idade da Inocência e Rei da Comédia do que do mais recente filme de Scorsese. E daí? Se calhar, é porque tenho saudades do passado, se calhar é porque sou uma romântica, se calhar é porque tenho saudades de atores que já não posso ver na tela, se calhar é simplesmente porque algumas histórias me tocam mais do que outras, e se calhar é por isso que sou uma pessoa válida, não menos importante do que ninguém, tal como o é o crítico de cinema ou o humorista. E talvez seja tão mais interessante descobrir porque é que um deles gosta do filme e o outro não, talvez falar sobre isso seja uma forma magnífica de conhecermos as pessoas. Talvez fosse muito bom voltarmos a conhecer as pessoas.

Isto não é bem bullying, está longe de o ser, mas não é muito diferente de ensinarmos a uma criança “o teu amiguinho deve ser idiota, porque toda a gente sabe que o sabor a chocolate é melhor do que o de morango”. E era tão mais interessante perguntar ao amigo “porque é que gostas mais de morango?”, e ele responder “porque quando era criança, vivia ao pé de uma quinta, e todas as tardes de primavera, ia com o meu avô apanhar morangos.”

Talvez nos surpreendêssemos tanto se conseguíssemos querer saber de onde vem a opinião do outro. E, com isto termino, dizendo que ninguém me pediu esta minha opinião e que ela não serve verdadeiramente para nada, e que só a dei porque quis, porque felizmente posso e porque, como todos nós, dou opiniões que se calhar não interessam a ninguém, e só ao nosso ego.

PS: Não faço referência aos nomes, nem do humorista nem do crítico de cinema, porque isto não é sobre eles, é sobre uma sociedade.