Vou contar-vos a história da minha ida à escola.
Eu estava quase a fazer sete anos, e, não sei bem porquê, a minha tia Anastácia tinha a mania de dizer que já me estava a despontar o buço.
O meu pai, antes que eu me pusesse a fazer experiências com a máquina de cortar a lã às ovelhas, decidiu que o melhor era eu ir para a escola.
Pega no telefone, liga para a central do Ministério da Educação e atira:
“Eu preciso de arranjar uma escola para o meu filho, que já tem o buço a despontar. Pode indicar-me um número de telefone, por favor?”,
e diz a telefonista,
“Números de telefone tenho muitos. Quantos quer?”
e diz o meu pai,
“Podem ser uns quatro ou cinco, não vá dar-se o caso de alguma linha estar avariada.”
E diz a telefonista,
“Avarias é costume haver… Quer mais perto ou mais longe de casa?
É que, às vezes, os pais para se livrarem dos filhos, gostam muito de os pôr à distância.”
E diz o meu pai,
“Não, não me quero livrar dele, que me faz falta para sachar as alfaces, tratar das galinhas e dar de comer ao burro. Não sei se tem outros préstimos…”
E eu fiquei a olhar para ele e a pensar,
“Será que o meu pai vai contrair algum empréstimo para me poder mandar à escola? Nesse caso, não quero ir. Ainda tem de hipotecar o burro e depois pode vir-se a acabar a brincadeira de andar com o jumento aos pinotes p’la lezíria.”
Estava eu nestes pensamentos quando ouvi o meu pai:
“Está lá? É da escola?”
“Sim, diga, se faz favor”, responde a funcionária da escola que serve para responder a perguntas.
“Tenho um miúdo que já vai para sete anos, não sabe ler nem escrever, mas gosta muito de contar. Por exemplo, sabe contar histórias e sabe sempre quantos ovos puseram as galinhas durante a semana. Ele diz que elas gostam muito de pôr os ovos na mesma cesta, mas pode ser que um dia se arrependam. Eu acho que está na altura de ele ir para a escola. Pode ir já hoje?”
E diz a funcionária da escola,
“Bem, hoje não, que a escola está fechada. Estamos em quarentena, por causa do vírus. Talvez daqui a uns meses, quando voltar a abrir. Mas o rapaz pode assistir por computador.”
E diz o meu pai,
“Computador? Cá em casa não temos esse tipo de eletrodomésticos. Temos arca frigorífica, com um porco lá dentro, temos uma televisão com quatro canais, a cores, para a mulher descansar os olhos a ver o Goucha, que, para mim, diz ela, já os tem muito cansados, e pouco mais. Andamos a juntar uns trocos para uma torradeira, porque passados uns dias o pão está rijo como cornos, mas ainda falta mais de metade, que isto é uma casa de gente honesta e trabalhadora.”
E digo eu,
“Ó pai, não se preocupe. Eu não quero ir à escola. Para andar de burro, dar milho às galinhas e sachar as alfaces não preciso de professores nem de computadores.”
E diz o meu pai,
“Então, e para aprenderes Filosofia?”
E pergunto eu,
“O que é isso?”
E responde o meu pai,
“Não sei.”
E diz a funcionária da escola, que ainda estava ao telefone para matar o tempo,
“Olhe que, quer ele venha ou não venha, a diferença é pouca. Se calhar aprende mais Geografia a passear com o burro do que a passear na escola. Ainda por cima o professor de Geografia está de baixa desde o ano passado.”
E diz o meu pai,
“Isso é que está muito mal. Bem, não me refiro ao professor, não sei se está muito mal ou se está de manha, mas os catraios precisam de aprender.”
E digo eu,
“Ó pai, mas há os livros, que nos ensinam muito.”
E diz o meu pai,
“Ó esperto! Os livros servem-te para quê, se tu não sabes ler?”
E diz a funcionária da escola,
“Bem, decidam-se lá se querem esta ou se querem outra escola, que eu agora tenho mais que fazer. Tenho que pôr um laique no faice.”
E diz o meu pai,
“É melhor experimentar outra. Talvez a que fica mais acima. Obrigado.”
Pôs-se a ligar, a ligar, a ligar, mas ninguém atendeu.
Se calhar está na hora da funcionária que atende os telefones ter ido fazer um xixi, pensei eu.
O meu pai estava a ficar enervado, e a minha mãe disse-lhe,
“Não te enerves, ó homem, que os funcionários públicos ganham pouco, portanto, também têm de trabalhar pouco.”
“Vou mas é ligar para a escola que fica mais abaixo.”, diz o meu pai.
Trim, trim, trim, trim…
“Está lá? É da escola que fica mais abaixo?”
E responde a funcionária que atende os telefones,
“Isso depende. De onde é que o senhor está a falar?”
Responde-lhe o meu pai,
“Eu estou a falar cá de casa.”
E pergunta-lhe a funcionária,
“E a sua casa fica mais acima da escola, não é?”
E responde-lhe o meu pai,
“Pelos vistos, fica, mas vocês aí na escola é que deveriam saber. É para isso é que se anda na escola, ou não é?”
A funcionária disse meia dúzia de coisas que é melhor eu não contar aqui, e terminou,
“Nesta escola não pode ser. Os professores estão em greve.”
“Isso é grave.”, disse ainda o meu pai sem que a funcionária o ouvisse.
Estava eu a ficar contente, porque não havia escola para mim, quando percebi que o meu pai estava desesperado por não encontrar uma escola disponível.
“Ó pai, deixa isso. Vamos é tratar da morte da bezerra.”
“Qual morte da bezerra, qual carapuça! Tu tens é que ir à escola para seres doutor. Assim, podes deixar de andar a matar galinhas e bezerros, e ainda ganhas por assinar um papel a dizer que a galinha foi morta nas devidas condições. Sem espinhas. No caso das galinhas há de ser: Sem penas.
Portanto, vou mas é ligar para o outro número que o Ministério da Educação me deu.”
“Está lá? É da escola?”
“É sim. O que deseja?”
O meu pai, que já estava a ficar virado do avesso, cortou-se nas explicações,
“Quero uma escola para o meu filho, que está a fazer sete anos e já sabe contar.”
E pergunta a funcionária,
“Já sabe contar? Sabe contar até quanto?”
“Mais de cem.” – respondeu-lhe o meu pai.
“E também sabe quantos são vinte menos sete, ou quatro vezes oito?”
“É claro que sabe isso tudo. Ele sabe sempre quantos ovos puseram as galinhas durante a semana, e são às carradas.” – informou o meu pai.
E diz-lhe a funcionária,
“Bem, nesse caso, esta escola não é para ele. Esta é uma escola de primeiro ciclo e ele já vai muito avançado. Tem de ligar para uma do segundo ciclo.”
E diz o meu pai,
“Não pode ser. É mesmo para o primeiro ciclo que ele tem de ir, para aprender a ler e a escrever.”
E diz a funcionária,
“As indicações que temos é que lá ele vai ser muito bem recebido. É uma escola inclusiva, muito flexível, que resolve a contento todas as ignorâncias. Vou dar-lhe o número. Tem onde apontar?”
Raisparta a caneta, que deixou de escrever.
“Barnabé, vai buscar um lápis” – ordenou-me o meu pai.
Dei a volta à casa, e lápis não havia.
Desenrasquei-me,
“Pai, não encontrei lápis, mas fui à lareira buscar um pedaço de carvão.”
E diz a funcionária,
“Vê como o menino é desenrascado. Eu bem lhe disse que ele tem de ir para uma escola do segundo ciclo.”
O meu pai apontou o número. Estava possesso, mas não quis ser indelicado.
“Muito obrigado pela sua atenção.” E desligou.
Vai daí, o meu pai, que não é de modas, berra:
“Amanhã, às oito da manhã, vamos os dois para a porta da escola. Vamos ver se vais ou não vais à escola!”
E assim foi. No dia seguinte, que era sexta-feira, chegámos à escola e a escola estava fechada.
“Pode ser que só abra às nove da manhã.” – disse eu para desanuviar.
Passava das nove e nada. A escola continuava fechada.
Diz o meu pai,
“Vou ligar. Sempre quero ver se me dizem que o meu filho não pode ir à escola.”
Trim, trim, trim, trim… Atendem.
“Está lá? É da escola?”
“Lamentamos, mas neste momento não nos é possível atender a sua chamada por motivo de greve da função pública. Por favor, tente mais tarde.”
P.S.: Agradecimentos a Miguel Gila e ao Raul Solnado.