No último 10 de Junho, ouvi pela rádio que o ministro do Ambiente estava em Moçambique, na cidade da Beira, para participar nas celebrações do Dia de Portugal com a comunidade portuguesa, bem como “testemunhar os estragos provocados pelo ciclone Idai e acompanhar o envolvimento de Portugal na ajuda à reconstrução”. O ministro anunciou que “o Governo de Portugal vai disponibilizar 150 mil euros para acções de formação e capacitação em conservação no Parque Nacional da Gorongosa”. Mais um gesto de cooperação generosa e aberta de Portugal para com um povo e um país irmãos.
Não muito longe dali, não muito longe da Gorongosa, concretamente em Nhamapaza, distrito de Maringué, também na província de Sofala, de que a Beira é a capital, desapareceu há três anos um empresário português, o Eng.º Américo Sebastião. Volta e meia há notícias do caso. Mas o que não há ainda é notícia dele. As autoridades vêm-se revelando completamente incapazes. O Estado moçambicano não retribui cooperação com cooperação: continua a resistir e a recusar a cooperação judiciária várias vezes oferecida por Portugal.
Américo Sebastião não sumiu no ar, não desapareceu na floresta, não caiu a um rio. Foi raptado por militares, num posto de combustível onde fora abastecer-se. Cito do site da Deutsche Welle: «Nunca mais se soube do paradeiro de Américo Sebastião desde o rapto, perpetrado por homens fardados, que algemaram o empresário e o colocaram dentro de uma das duas viaturas descaracterizadas com que deixaram o posto de abastecimento de combustíveis.» O rapto foi em 29 de Julho de 2016.
Desde então, as movimentações, as diligências e os apelos movidos pela família (a mulher, dois filhos e a mãe) têm sido contínuos, insistentes e variados. Sem quaisquer resultados práticos. O Estado moçambicano é uma parede de pedra, porventura também um coração de pedra.
O processo de investigação aberto em 2016 já foi encerrado duas vezes, sem que produzisse o que quer que fosse. Só poderia produzir, se tivesse investigado; e o Estado moçambicano nada investigou. Entre aquilo que tem (que família e advogados pudessem ver) e nada, a diferença é nenhuma. Está abaixo do mais deplorável: longos meses de coisa nenhuma, terminando no arquivo do vazio. O Estado moçambicano não tem nada para mostrar. Mas, pela experiência decorrida, deve ter muito para esconder.
Cito de novo do site da Deutsche Welle: «Portugal ofereceu por várias vezes a cooperação judiciária e judicial acordada entre os dois países para tentarem localizar Américo Sebastião, mas as autoridades moçambicanas recusaram.» Porquê?
Por que recusa Moçambique a ajuda policial e a cooperação judiciária de Portugal? O que é que o Estado moçambicano receia que magistrados e polícias portugueses possam ver, no quadro da devida e necessária investigação conjunta ao desaparecimento de um cidadão português em Moçambique? Pretendem as autoridades moçambicanas esconder alguma coisa? O quê?
A última vez que foi recusada por Moçambique a cooperação no âmbito da Justiça foi particularmente grave e ofensiva.
Num encontro com a procuradora-geral de Moçambique, no princípio do ano, já depois de o processo em Sofala ter sido uma vez mais encerrado num completo vazio de resultados, Salomé Sebastião, mulher do raptado, escutou-a a dizer que haveria abertura da PGR moçambicana para aceitar cooperação da PGR portuguesa, se houvesse um pedido formal em devida forma. A novidade foi prontamente transmitida e foi feita pública. Finalmente, havia abertura de Moçambique. Poucos dias depois, a PGR portuguesa enviou a oferta de cooperação a Moçambique e fez públicos este pedido e esta disponibilização. Não se passou nada. Até que, dois meses depois, passa-se algo absolutamente inconcebível.
Na sessão anual de perguntas na Assembleia da República moçambicana, a procuradora-geral Beatriz Buchili foi perguntada por deputados a respeito do caso Américo Sebastião e da cooperação judiciária de Portugal. O que respondeu aos deputados moçambicanos ultrapassa tudo o que pudesse imaginar-se: «No que diz respeito ao pedido de cooperação feito por Portugal, importa fazer referência que a Procuradoria-Geral da República de Moçambique ainda não recebeu um pedido formal de cooperação jurídica e judiciária sobre este caso.» Ou seja, mentiu. Mentiu sobre o Estado português. Mentiu à Assembleia da República do seu país.
Este facto tornou-se inegável após o esclarecimento público da Procuradoria portuguesa: «A procuradora-geral da República (PGR) de Portugal manifestou disponibilidade em cooperar com a Procuradoria-Geral moçambicana na investigação do desaparecimento do empresário português Américo Sebastião, acrescentando que já houve uma resposta por parte de Moçambique. Contactada pela Lusa, fonte da Procuradoria referiu que Lucília Gago dirigiu um ofício à homóloga moçambicana no âmbito da cooperação judiciária e policial relativa ao desaparecimento de Américo Sebastião.»
Este esclarecimento confirma um pormenor que torna ainda mais censurável a afirmação de Beatriz Buchili perante os deputados em Maputo: é que a PGR moçambicana já tinha respondido à PGR de Portugal! Esta resposta, sabe-se, foi no sentido de recusar uma vez mais a oferta portuguesa, embora acrescentando o clássico palavreado equívoco: mais tarde, talvez. O que leva a PGR de Moçambique a mentir aos deputados e a também esconder a resposta a Portugal?
Portugal não pode intrometer-se na verdade ou nas mentiras dos debates parlamentares moçambicanos, da mesma forma que outros países também não cuidam dos nossos. Mas Portugal é directamente ofendido ao faltar-se à verdade sobre a cooperação portuguesa, para mais perante um imperativo humanitário: o esclarecimento do caso que atinge um cidadão português e inquieta duramente a sua família.
Será que o Estado moçambicano sabe ou presume que Portugal não faz e nada vai fazer, senão engolir tudo o que se lhe fizer, incluindo desconsiderações e mentiras? É aqui que estamos.
Américo Sebastião tem uma família extraordinária. Deve-se ao amor, à dedicação e à tenacidade da mulher e dos dois filhos que este caso não estivesse já soterrado nas areias movediças desse vasto deserto chamado “desconhecido”. São incontáveis as diligências que Salomé Sebastião tem movido junto de autoridades políticas e judiciárias de Moçambique e de Portugal, bem como a nível internacional. O filho mais velho, Rodrigo, largou tudo e foi para Moçambique gerir as actividades do pai. Na Beira e nas terras do pai, também apanhou em cima com o ciclone Idai, cujo rasto mereceu a presença, pelo 10 de Junho, do nosso ministro. É lá que está em permanência desde que lhe raptaram o pai. É gente de extrema coragem e verticalidade, que merece toda a solidariedade de que formos capazes.
O caso causa tanta estranheza, que, em conversas, às vezes, aparece-me alguém a dizer: “Ah! Deve ter feito alguma. Deve haver ali qualquer coisa com ele…” É um comentário ao modo daqueles que, quando alguém reporta um caso de violação, logo perguntam: “Ela estava de mini-saia, não?” Não, ela não estava de mini-saia. E que estivesse!… Nada há que se aponte a Américo Sebastião. Se houvesse, já teria saltado, mesmo como desculpa esfarrapada. Em três anos de notícias, nada foi apontado a Américo Sebastião, engenheiro agrónomo, um empresário a criar riqueza, emprego, progresso no centro de Moçambique. Vale a pena rever a Grande Reportagem “Sem Rasto em Moçambique”, magnífico trabalho de Cândida Pinto, ainda na SIC. A única direcção para apontarmos os dedos está mesmo nas autoridades moçambicanas e, subsidiariamente, na política em Portugal, na Europa e no mundo. É aqui que está toda a falha.
Salomé Sebastião, viajando amiúde entre os dois países, tem abordado continuamente inúmeros responsáveis e figuras políticas. Dirigiu apelos por escrito a todos os governantes. Em Dezembro, aquando da entrega de mais uma petição na Assembleia da República, a líder parlamentar da RENAMO, Ivone Soares, comentou: “É estranho para nós moçambicanos, sabendo das nossas dificuldades, que as autoridades não aceitem o apoio da Judiciária portuguesa.” E acrescentou: “Se houvesse vontade política, o comportamento das autoridades seria outro. Só se pode justificar esta apatia e este completo desinteresse com o facto de não haver vontade política.” Na mesma ocasião, o porta-voz da bancada parlamentar FRELIMO, Galiza Matos, sublinhou: “Está em causa também a imagem do país. O que nós entendemos é que Moçambique tem de merecer respeito a nível do mundo.” E reforçou: “Entendemos que está em causa não só a vida de um cidadão, está em causa também uma família.” O MDM, o outro partido parlamentar moçambicano, tem-se manifestado em sentido similar. Mas, além das judiciárias, as autoridades governamentais pouco se interessam. O Presidente da República, Filipe Nyusi, ainda não teve tempo para receber a mulher do empresário português raptado.
A linha limite para qualquer português é a rejeição da cooperação policial e judiciária portuguesa. Se a investigação corresse bem e alguma coisa se tivesse avançado, ainda poderia transigir-se – embora mal – com o facto de um país amigo, um país parceiro, um país-irmão recusar a cooperação especializada de Portugal na investigação. Mas quando a investigação é nada, a reiterada exclusão de Portugal é gesto inamistoso e obstrução inexplicável. E quando, para cúmulo, a procuradora-geral mente aos deputados sobre o estado do processo e a cooperação portuguesa, chegamos ao limiar do acto hostil. Quererá o Estado moçambicano congelar as relações oficiais com Portugal?
Moçambique vive uma situação muito difícil. O enorme escândalo das “dívidas ocultas” continua a perturbar o país e a manchar gravemente a reputação nacional e internacional do Estado e dos dirigentes. O embrulhado caso do ex-ministro Manuel Chang seria motivo de paródia em todo o mundo, se não fosse a extrema gravidade dos factos. A paz e a tranquilidade continuam sem estar plenamente asseguradas, 27 anos depois do acordo de Roma, o que diz muito das imperfeições do processo político. A falta de Afonso Dhlakama faz-se sentir. Ainda não houve eleição destituída de problemas e, nalguns casos, de contestação severa, como nas últimas autárquicas, o que não ajuda à confiança democrática. Os repetidos ataques cruéis por bandos armados, alegadamente islamistas, matando populares inocentes na província de Cabo Delgado, mostram um Estado frágil, impotente para proteger os seus cidadãos. E, sobre um pano de fundo de pobreza e de necessidades agudas de desenvolvimento a todos os níveis, abateu-se a inclemência de dois consecutivos e violentos ciclones no Centro e no Norte, o Idai e o Kenneth.
Sentimos espontaneamente solidariedade com os moçambicanos. Além das acções oficiais, são inúmeras as iniciativas que têm surgido em Portugal, para mobilizarmos apoio e ajuda para as zonas mais fustigadas pelos ciclones, socorro das populações e reconstrução. A cada ataque em Cabo Delgado, defendo que, sob pedido e enquadramento das autoridades moçambicanas de Defesa e Segurança, organizássemos uma missão militar ou da GNR para enfrentar aquela crise local e devolver paz ao Norte de Moçambique – em Timor-Leste e no Iraque enfrentámos, com grande sucesso e reconhecimento, perigos e ameaças semelhantes. Tudo isto e o que mais for só pode ser aplaudido. Queremos prestar a melhor cooperação a Moçambique, como a outros parceiros da CPLP. A visita do ministro Matos Fernandes cabe plenamente neste quadro. A cooperação policial e judiciária no caso Américo Sebastião também, com um adicional imperativo humanitário: encontrar Américo Sebastião.
Imaginemos que Américo Sebastião não era o marido de Salomé. Imaginemos que era marido de uma ministra, ou irmão de um ministro, ou pai de um secretário de Estado, ou primo, tio, irmão, cunhado de líderes parlamentares da nossa Assembleia da República. Alguém acredita que este caso dramático estaria a rolar com tanta placidez quanto aquela em que tem decorrido? Citei palavras de deputados da RENAMO e da FRELIMO. Alguém acredita que, se houvesse aqueles laços de parentesco, os partidos políticos portugueses e seus responsáveis parlamentares não teriam já feito uso da apropriada voz grossa? Em vez disso, nem sequer voz fina ainda se ouviu. Não quero entrar pelas linhas do familygate. Até porque, aqui, seria virtuoso. Se o Estado português se irritasse, como é devido, por causa da injustiça e da violência feita contra o parente de um poderoso, abençoada relação de parentesco, porque a resposta seria toda a necessária e desse precedente iriam beneficiar, no futuro, todos os cidadãos.
Nós precisamos de que o Estado português se levante, quando um cidadão em perigo grave necessita que esteja de pé. Nós precisamos que o Estado português não esteja de cócoras neste tipo de situações – em particular nesta, que já se arrasta há demasiado tempo.
Cabe mobilizar também sobre o governo de Moçambique a diplomacia internacional, em especial nas Nações Unidas, na União Europeia e dos países mais relevantes. Mas esses apoios externos só surgirão e surtirão efeito, se todos virem que o Estado português e suas vozes principais, a começar na pressão exigente dos deputados, estão realmente a falar a sério e não apenas a ir gerindo a burocracia da infelicidade e entretendo o triunfo do fatalismo.
Se Moçambique continuar a não apresentar explicações, nem provas sobre o rapto e o paradeiro de Américo Sebastião e, apesar deste zero absoluto, persistir em impedir a cooperação policial e judiciária de Portugal, o que devemos fazer? Não me perguntem a mim. Perguntem a cada deputado ou deputada, a cada ministro ou ministra, a cada presidente, a cada líder, em Portugal. Perguntem o que crêem que devia ser feito se o raptado fosse o seu pai, o seu marido, o seu primo, o seu irmão, o seu cunhado, ou um amigo muito chegado ou muito querido. O que pensarem é o que deve ser feito. Exactamente isso, quanto a Américo Sebastião.
Quando pensamos com o coração, pensamos frequentemente melhor. Aquilo que nos move o coração provoca-nos dores tenebrosas nas costas, se nos pomos de cócoras. Se não reagimos à altura, provoca-nos também uma vergonha tão gigantesca que não podemos jamais esconder. Quando pensamos com o coração, temos mesmo de nos pôr de pé. Temos mesmo de olhar de frente. Temos mesmo de resgatar a vítima e realizar a justiça.
O Estado moçambicano fechou-nos a porta oficial. Em nome de Américo Sebastião e de todo e qualquer cidadão português que venha a deparar-se com uma violência destas e um desprezo tão grave, só podemos voltar a tratar oficialmente, se voltarem a abri-la. Assim tem de ser feito.
Quanto vale em Portugal a vida e a liberdade de um português raptado?