A propósito do Ministério da Cultura gastar um milhão de euros no TV Fest.
A propósito do pagamento de 6,42 €/hora aos enfermeiros em contratos de 6 meses.
A propósito do chumbo na Assembleia da República da resolução para atribuição de um subsídio de risco aos profissionais que se encontram na linha da frente ao combate da pandemia do Covid.
Como cirurgiã, mulher das ciências, pragmática, prática e objetiva, sinto por vezes dificuldade em compreender determinadas atitudes que vão para além do que considero lógico e razoável, sobretudo quando tomadas por pessoas conscientes e lúcidas, em quem o povo Português se vê obrigado a confiar.
Atitudes como estas são reveladoras, na minha opinião, de uma total desfaçatez e falta de respeito, não sendo dignas de um País que se diz democrata!
Compreende-se, portanto, que todas as classes envolvidas direta ou indiretamente neste processo heroico, altamente desgastante física e psicologicamente e impensável até há uns meses, estejam revoltadas.
A vossa sorte, Governo e apoiantes nestas tomadas de decisão, é que o que nos move não é o dinheiro, não é a glorificação, mas sim o doente!
O doente é a nossa Missão, é o motivo da nossa entrega.
Vocês não têm noção do que se passa nos hospitais, vocês não têm noção do que é ir trabalhar e saber que pode ser a última vez.
Vocês não têm noção do que passamos com os EPIs, vocês não têm noção do medo que temos de nos aproximarmos dos colegas, para não lhes tocarmos, vocês não têm noção do que é saber que colocamos a nossa família em risco.
Eu não o peço para mim, mas para quem ganha 600€: 20% é uma miséria para colocar a vida em risco! Não há vida que valha tão pouco e palavras post mortem que os glorifiquem.
A vivência de um profissional de saúde e de todos os que com ele colaboram, desde o médico, enfermeiro, auxiliar, passando pelos técnicos de laboratório, radiologia, administrativos, funcionários da limpeza, seguranças, cozinheiros e perdoem-me se me esqueci de alguém mais, coloca-nos numa tensão que parece que estivemos a trabalhar uma semana em vez de um turno normal, seja ele de 12 ou 24 horas.
Ninguém imagina a tensão e o medo, mas sobretudo a descaracterização de qualquer ato para com o doente, onde por vezes um simples sorriso é o bastante para aliviar a dor, aliviar a alma, aliviar o medo.
Talvez por isso tenham dificuldade em nos compreender.
E tudo isto se passa, mesmo não estando em unidades Covid.
Uma das minhas filhas, preferiu ficar no colégio interno na Holanda, porque tem medo que eu a contagie, os meus filhos mais velhos estão em Lisboa trancados, longe de mim, e o mais pequeno que vive comigo, nem nos cruzamos….
É a solidão… é o risco de operar os doentes infetados, é a dúvida se existe amanhã.
E depois, quando regressamos a casa, estamos sós, sem o aconchego de um sorriso ou de uma palavra. Sós, porque as pessoas têm medo de nós, receiam o nosso contacto. Esta é a realidade!
Não é o dinheiro que nos move neste momento, mas atitudes que não nos façam sentir tão desprotegidos e tão substituíveis.
Quando há dinheiro para assessores e TV Fest, fico sem palavras para exprimir a minha revolta.
Desculpem este meu desabafo de quem esteve 24 horas a trabalhar, mas estou cansada, cansada de ver cadáveres que não são contabilizados para o número de mortes por Covid porque têm comorbilidades.
Estou cansada de assistir ao que se passa na Assembleia da República, onde se assiste à não aprovação de propostas ou resoluções que possam ajudar no combate a esta pandemia, que nos possam ajudar a estudar a doença.
Estou cansada desta engenharia de números com a contabilização do número de mortes por Covid.
Estou cansada de sermos hoje idolatrados, mas bem longe, e amanhã voltarmos a ser ignorados.