Vi ontem o debate do Estado da Nação, que foi sobretudo, como de costume, um debate sobre a nação do Estado, que é o que Portugal é. O esforço para prestar atenção a tudo aquilo foi propriamente desmesurado e não me perdoarei tão cedo a decisão fatal. Nunca se deve supor uma disponibilidade de espírito que não se tem – e foi justamente isso que eu fiz. Gostava de poder dizer que aprendi a lição. Mas aos 62 anos estas coisas não se aprendem: sofrem-se apenas. Pathei mathos, uma ova! Não há nenhum saber novo, penosamente conquistado, no horizonte. Só uma má recordação.
No princípio, saltei para a Sport TV para ver o final da etapa da Volta à França, a chegada a Peyragudes. Depois, sempre que me lembrava de alguma coisa para fazer, aproveitava e saía a correr da sala da televisão. Arrumei várias prateleiras. Costumo adiar estas coisas indefinidamente. Desta vez, fui lesto e diligente. Em desespero, fui à Dona Rosália da mercearia S. Miguel comprar víveres e, de caminho, abastecer-me com uma bebida gelada, de que bem precisava para me animar. E, sempre que voltava ao triste poiso do sofá, as máquinas de palavras lá estavam a falar. Falavam, falavam, com propósitos indecifráveis. Contra todas as minhas forças, o espírito voava-me para longe. Cada vez para mais longe. Mais umas horas e tinha saído do planeta Terra.
São estas as notas que um cidadão comum foi tirando, arrancadas a um inominável abismo de tédio. Vão por ordem alfabética dos nomes dos deputados e membros do Governo que fixei.
André Ventura – Tem uma teoria: é a única oposição. É a teoria dele e ele gosta muito dela. Gosta tanto que não cessa de a proclamar. Enquanto o ouvia lembrei-me que me apetecia uma longa viagem à Escandinávia. Belas paisagens, fiordes, lagos, o cisne de Tuonela, museus, etc. Aproveitava, de passagem, para ver Hamburgo, onde nunca fui. Depois veio-me à cabeça “O Grito” de Munch e a minha condição presente tornou-se-me clara.
António Costa – A pandemia e a guerra encontraram pela frente a energia e a resolução do Governo e Costa soube e saberá contrariar o “discurso do caos”, protegendo crianças e velhinhos. A resposta às “emissões negligentes” causadoras dos fogos não tem sido, nem será, menos efectiva contra o “discurso fatalista” dos Velhos do Restelo. Mais genericamente, o governo encontra-se possuído por uma “agenda reformista” que tem por base uma reforma do Estado, levada a cabo com confiança, firmeza e determinação. Venceremos mais esta crise. O país não empobreceu. O Governo gasta uma chusma de dinheiro connosco. Ou Malta? Também nunca fui a Malta. Li algumas coisas sobre a Ordem de Malta. Valletta pode ser interessante. Comer-se-á bem?
Catarina Martins – A questão do empresário Mário Ferreira – sobretudo os cruzeiros no Árctico, que julga inacreditáveis e danosos para o planeta – interessa-lhe, tal como a Uber. Catarina é contra a “distopia liberal”. Além de abominar os eucaliptos, é claro. A Croácia e a Bósnia conheço, não conheço a Eslovénia. À Sérvia não me apetece ir. Vou pensar. Em todo o caso, começa a parecer-me uma urgência.
Duarte Cordeiro – Ocupou-se das alterações climáticas. O Governo faz tudo para proteger as nossas florestas. O que implica, como é bom de ver, uma reforma estrutural da energia. É pelo crescimento e pela sustentabilidade. Reformas, crescimento e sustentabilidade. Duarte Cordeiro está confiante. Cracóvia parece que é uma linda cidade. Ah, a Polónia! Chopin, Paderewski. Woodrow Wilson dizia que este último tinha a sensibilidade fácil. Não me esquecer de responder aos mails deixados para trás. Amanhã.
Eurico Brilhante Dias – Está tudo a melhorar a olhos vistos. Está tudo a melhorar a olhos vistos. Está tudo a melhorar a olhos vistos. Sempre gostei de guias turísticos. Até tenho alguns Baedecker antigos. Não do século XIX, exceptuando um sobre a Grã-Bretanha, mas do princípio do século XX. Aqueles da DK, completamente diferentes, não são maus. Até gosto da fórmula. Já os Lonely Planet são mais para jovens que têm boas pernas e querem beber uns copos baratos longe de casa. Gente do século XXI. Eu devo ter nascido no século XIX. Em todo o caso, sinto-me às vezes como se tivesse idade para isso. Regar os metrosideros.
Hemiciclo – O hemiciclo anima-se de vez em quando. Também me aconteceu a ver a Volta à França. Ali, confesso que não percebo o ar de felicidade que por vezes banha os deputados. E conseguem rir e bater palmas (têm a palma fácil) simultaneamente. Chama-se a isto versatilidade. O passo seguinte é andar e mascar chiclete ao mesmo tempo. Albânia? Dantes, havia muitos intelectuais comunistas italianos que iam lá passar férias. Serão mesmo boas as praias? Afinal de contas, já não é uma ditadura.
Inês Sousa Real – Luta contra os eucaliptos (com Catarina Martins, já são duas). Os eucaliptos são a Uber exclusiva do PAN. E se os motoristas da Uber plantassem eucaliptos? A Uber transformar-se-ia num tema para a Inês. Não levou a bem que o ministro Duarte Cordeiro não tivesse falado dos animais. Países bálticos? Ali no meio há Kalininegrado, a antiga Königsberg de Kant e de E. T. A. Hoffmann, escritor fantástico e um dos maiores críticos musicais do século XIX. Königsberg era a flor da Prússia Oriental, sobre a qual me pus a comprar livros. O túmulo de Kant, a sua estátua e a placa na casa que está no lugar daquela onde ele viveu, são regularmente objecto de vandalização. Dizem que era “russófobo” (pobre Kant) e que ninguém compreende os livros dele. Mikhail Kalinin, de onde vem o nome russo da cidade, foi Presidente do Soviete Supremo no tempo de Estaline, célebre por ter mandado a mulher para o Gulag.
João Cotrim de Figueiredo – O PS contenta-se com o pouquinho e a mediocridade. Por acaso, é verdade. Daí o auto-contentamento que por lá reina. Há a Roménia, é claro. Também nunca lá fui. E também, como a Albânia, já não é uma ditadura. Li há uns tempos um livro muito curioso sobre as pessoas que, nesses países, são nostálgicas dos tempos das ditaduras. Tirar a limpo se o Drácula vivia naquilo que hoje em dia é a Roménia ou se foi na actual Hungria. Parecendo que não, pode ser importante.
Joaquim Miranda Sarmento – Os governos de Costa conduziram-nos a um cada vez maior empobrecimento. O Governo fica com uma chusma de dinheiro nosso. As partes da Suiça que não conheço? O problema é que a Suiça é caríssima. E o que é que me dizem da turbulenta Tchizé dos Santos? Em Moçambique, chamam-lhe “a princesa”. Bom, pelo menos os jornais deixaram de falar do falecido “Zédu”, hábito que me parecia horrível. Há “apropriações culturais” que são verdadeiramente inconvenientes.
Jerónimo de Sousa – Jerónimo é contra o domínio do grande capital e dos grupos económicos, que obtêm lucros bilionários. Só uma política patriótica e de esquerda, é claro, nos pode salvar. Notei que não falou de “capitalismo de casino”, o que é sempre uma pena. A Ásia? É verdade: escrever à Blé para lhe agradecer o envio da revista.
Luís Graça – Um senhor deputado do PS, que jura que a cultura é o máximo, que o PS faz tudo por ela e a direita tudo contra. África?
Pedro Adão e Silva – O Governo não teme nada. Foi capaz de virar todas as páginas: a da austeridade, a da pandemia, e por aí adiante. Dêem-lhe um problema e o Pedro vira a página. Tirou um curso de leitura rápida e ei-lo ministro. Tem uma doutrina sobre o que são as boas reformas e como as fazer. A Oceania? Mas não na Nova Guiné, que parece que ainda andam por lá antropófagos e não me apetece acabar no papo de um papua.
Rui Tavares – Sempre simpático, luta contra os eucaliptos (com Catarina Martins e Inês Sousa Real, já são três). O Norte do Canadá? Rever o “Nanook” do Flaherty, sobretudo aquela cena em que a família vai saindo toda dos fundos do kayak.
Sinceramente, não me lembro de quatro horas tão perdidas como estas, e nos últimos tempos tenho tido direito a várias. Juro que não me apanham outra vez numa assim. Os discursos sobrevoavam sistematicamente a realidade, sem nunca a tocar. Com um quase virtuosismo na matéria, só possível por uma total indiferença em relação à verdade, como António Costa, ou com uma estranha debilidade, como Pedro Adão e Silva. A oposição não foi menos fraca (aquela bancada do PSD, escolhida a dedo por Rio – nem faltou aquele jovem de rabo de cavalo!). O toque na realidade foi puramente instrumental, sem a força de uma qualquer visão que lhe desse sentido político. Foi tudo, mesmo com aquele recurso constante ao discurso dos “problemas estruturais”, como se nenhum problema fosse verdadeiramente detectado. Enigmas e mistérios houve muitos. Problemas, nenhuns. E, no entanto, são os problemas – não os enigmas e os mistérios – que queremos ver resolvidos. Os enigmas e os mistérios não nos fazem mal nenhum. Até nos fazem bem. O mal é eles estarem ali em vez dos problemas. Estamos lixados.