A recente aprovação pela Assembleia da República, da obrigatoriedade de remuneração de todos os tipos de estágios realizados em profissões reguladas por ordens profissionais aparenta ser um passo em frente no sentido de evitar quer favorecimentos, quer abusos, porque existem ambas as situações. Mas cuidado com as aparências, pois torna-se necessário avaliar se uma medida deste tipo é compatível com a realidade em que vai operar, ou se afinal a sua viabilidade depende da transformação de muitas sociedades de profissionais em sociedades multidisciplinares.

Em primeiro lugar, importa relembrar que em matéria de estágios não remunerados eles abundam em profissões não reguladas e que ficam fora desta medida. Em seguida, cumpre verificar se são os empregadores das profissões reguladas por ordens profissionais ou os estagiários, que serão mais afectados por esta medida, em teoria justa, mas susceptível de criar alguns problemas colaterais que não são de menosprezar.

A situação laboral dos estagiários das profissões reguladas foi mudando especialmente na última década. Profissões onde havia um excesso de oferta face às necessidades, caso típico dos advogados, parecem estar mais perto de um equilíbrio num futuro próximo, uma vez que se reduziu o número de interessados nesse curso superior, face à perspetiva de ficarem desempregados. Nos cursos técnicos (medicina e engenharia) a emigração tem reduzido drasticamente a procura interna de emprego, havendo já inclusive falta notória desses profissionais, tal como acontece com contabilistas, que não chegam para preencher a oferta de emprego. Não sei o que se passa com os farmacêuticos, arquitectos ou veterinários.

Em todo o caso, tanto quanto é a prática conhecida nas sociedades destes profissionais, existem estagiários que são remunerados e estagiários que não o são, mas a desempenharem funções em simultâneo nas mesmas entidades. E porque razão uns são remunerados e outros não são? Salvo casos pontuais de favorecimento, que sempre existirão pois isso é da natureza humana, a razão principal é seguramente porque alguns estagiários demonstram autonomia técnica e competência mais cedo que outros, uns têm mais perfil e vocação para profissão que escolheram ou surgem mais bem preparados, porque estudaram mais ou tiveram melhores os professores. O estágio é também um tempo durante o qual quem inicia uma profissão deve reflectir se a sua escolha é mesmo aquilo que quer ou, não sendo, uma vez ainda novo, será tempo de percorrer outro caminho.

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As condições dos estágios em profissões reguladas devem ser estabelecidas com muita cautela. A ideia que o Estado deve pagar os estágios foi recusada pela maioria parlamentar e entendemos que bem, a não ser que a intenção seja alargar tudo e todos à condição de empregados de facto do Estado, como já são mais de sete mil colegas meus, que não fazem outra coisa que trabalhar em patrocínios oficiosos pagos (mal pagos) pelo Ministério da Justiça.

Mas tornar obrigatório que entidades particulares, como são as sociedades ou gabinetes de advogados, arquitectos, contabilistas, engenheiros, farmacêuticos, veterinários e não me recordo de todos, independentemente da sua dimensão e volume de negócios, tenham de remunerar todos os estagiários que admitem, pode constituir um factor de verdadeiro bloqueio de acesso à profissão. Salvo casos de grandes alunos, que já são “soprados” pelas faculdades junto de possíveis empregadores, ainda antes de terminarem os cursos – esses vão logo ter o estágio remunerado, sem necessidade de legislação – ficarão fora dos estágios remunerados muitos futuros profissionais. E se hoje já é difícil ser aceite numa sociedade – em qualquer daquelas profissões – como estagiário não remunerado, agora com este regime, menos se vislumbra como terão acesso a carteira profissional.

Aliás, como já é pratica em vários países europeus, existe um verdadeiro numerus clausus no acesso às profissões reguladas, através da limitação por várias vias – entre as quais a de não encontrar patrono para o estágio – situação esta, que a obrigação de remunerar o estágio só vem agravar.

A dimensão de muitas sociedades de advogados, de gabinetes de engenharia ou ateliers de arquitectos — já não falando dos profissionais em regime de prática individual — não permite com real compromisso remunerar os estagiários, salvo aqueles que sejam de imediato muito produtivos e. mesmo assim, a regularidade das receitas destes profissionais depende da boa vontade dos clientes, a começar pelos seus clientes públicos, que não cumprem prazo algum de pagamento.

Perante este cenário, a opção mais tentadora é a criação, integração ou transformação em sociedades multidisciplinares, juntando numa mesma sociedade profissionais de outras actividades reguladas. A mais óbvia, é a junção de sociedades de advogados com auditores e contabilistas ou na área dos contratos públicos com engenheiros ou arquitectos. Todas estas actividades já trabalham nos mesmos projectos, mas não têm entre si affectio societatis, sendo, por conseguinte, independentes. Juntos numa sociedade multidisciplinar, a situação é radicalmente diferente, até por questões financeiras, hierárquicas,  salvaguarda do sigilo profissional e presumíveis incompatibilidades. Mas em contrapartida, factos são factos, para obter meios de tesouraria que permitam nomeadamente cumprir obrigações relacionadas, agora também, com o pagamento de todos os estagiários, essa ligação societária aparenta ser proveitosa, pois ganha-se dimensão e alarga-se as fontes de rendimento. Tudo indica que este processo, mais protesto menos protesto, é irreversível.

Estamos, portanto, perante uma alteração – esta sim, merece ser classificada de estrutural – pois mais parece uma extinção, daquilo que nos habituámos a considerar como as ditas “profissões liberais” que tudo indica, possuirão no futuro próximo,a viabilidade que hoje terá uma fábrica de chapéus para homem…