Foi há 6 meses, quando ainda não havia pandemia, que se legalizou a eutanásia. Outros tempos em que a liberdade, dizia-se, era o valor supremo. O direito à vida pressupunha o direito à morte. Morrer com dignidade era a palavra de ordem. Acredito que para muitos ainda o seja embora não creia que, para os que assim o julgam, a liberdade de assumir o risco de morrer por sair de casa e viver de forma responsável seja digno da protecção da lei. Esta é uma das grandes ironias de 2020.

Não quero menosprezar o perigo e o risco que a Covid-19 representa para muitos, principalmente para os mais velhos e doentes. Apenas que a supressão das liberdades individuais são também um risco e um perigo para todos nós. Hoje, quase seis meses após a decretação do início da pandemia, consideramos normal que jovens que dificilmente são afligidos pela doença não possam entrar num bar depois a meia-noite. Consideramos normal se as escolas tiverem de fechar e as crianças passarem mais um ano em casa, quando essas mesmas crianças não são afectadas pela Covid-19. Consideramos normal fechar os velhos em casa porque deixámos de acreditar na sua capacidade de discernimento. Consideramos normal que a polícia obrigue ao fecho de festas de Verão. Consideramos normal que funcionários das câmara municipais, postados à entrada das praias, nos perguntem num tom inquisitório e condescendente se lavámos as mãos. Consideramos normal que os hospitais adiem cirurgias e esqueçam outras doenças em nome de apenas uma. Consideramos normal que o número de óbitos tenha aumentado porque se cancelaram consultas, rastreios e tratamentos. Até Paris mobilizou a polícia de choque para impor o uso de máscara em Marselha e achamos normal. No novo normal somos acríticos, amorfos e amorais.

Tornou-se normal conhecer pessoas sem emprego ou cujas empresas fecharam de repente. Perderam o ganha-pão e dependem hoje da ajuda do estado ou de familiares ou de instituições que, dentro de pouco tempo, estarão também em dificuldades. Perdeu-se a noção do equilíbrio e do bom-senso em nome de números, curvas e dados diários da Covid-19. Corremos o risco de deitar fora séculos de pensamento, de lutas e guerras em prol de uma liberdade que sacrificamos por uma segurança ténue e incerta. Desconhecida. E fazemo-lo de repente e sem que percamos um segundo do nosso precioso tempo a ponderar no que estamos a fazer.

A presente pandemia representa riscos e não é uma gripe igual às outras. Longe disso. Mas também não deve, não pode, implicar o fecho das nossas vidas nem a suspensão das nossas liberdades individuais. Há que procurar um equilíbrio que nos permita proteger os mais vulneráveis (sem os desresponsabilizar) e permitir que quem tenha de trabalhar o faça em segurança e livremente. Que as crianças e jovens tenham acesso à educação que, até há 6 meses, era indispensável. Dizia-se um pilar da nossa civilização. A nossa paixão. Palavras vãs que o vento levou.

É tudo normal, até o que nos devia surpreender como a permissão da festa do Avante em tempo de pandemia. Vejamos o seguinte: não me permitem entrar num bar a partir da meia-noite, são proibidas as concentrações de mais de 20 pessoas, mas já posso ir a uma festa onde se exultam ditaduras e assassinos? É isto? É este o novo normal que se apregoa? É que se é vivemos, literalmente, numa sociedade de doidos que perdeu a noção do ridículo e do pudor. Para tal bastou o sacrifício de parte da nossa liberdade. Nem quero imaginar como vai ser quando perdermos a que nos resta.

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