Alguns dos maiores defensores de José Sócrates tiveram um súbito despertar de consciência e aceitaram finalmente que tudo o que rodeia o ex-primeiro-ministro faz envergonhar o PS e qualquer pessoa com um pingo de decência – parece que o PS está cheio de sonsos e enganados. Sim, por um lado, ninguém acredita na honestidade destes recentes desabafos de altos dirigentes socialistas que, após quatro anos de silêncios tácticos, surgem de forma manifestamente concertada. Mas, por outro lado, já nem é esse o ponto. O ponto é que, de agora diante, se pode falar de José Sócrates sem esperar pelos veredictos dos tribunais e dizer, com todas as letras, que há matéria suficiente para assinalar vergonha e desonra para a democracia. Ou seja, já se pode falar de José Sócrates. E, agora que as mordaças caíram, emerge um renovado interesse em conhecer a avaliação deste caso por parte de individualidades que, ao longo dos anos, estiveram ligadas à defesa de Sócrates. Uma dessas individualidades é Pinto Monteiro.

O antigo Procurador-Geral da República (PGR) ficou para a história como aquele que, à frente do Ministério Público, serviu de bloqueio à actuação da Justiça nos casos que envolveram José Sócrates. Justa ou injusta, esta não é uma apreciação partidária, mas uma vinda de dentro do próprio sector. João Palma, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP, 2009-2012), define o mandato de Pinto Monteiro como “o período mais negro da história do Ministério Público democrático”, na medida em que as “tentativas de domínio do poder judicial” pelo governo de Sócrates tiveram “relevantes cumplicidades”. Não é coisa leve. E, justa ou injusta, esta apreciação cola com os factos conhecidos nos processos em que José Sócrates foi visado durante os anos de mandato de Pinto Monteiro.

Em relação ao caso Freeport, Pinto Monteiro garantiu inúmeras vezes que a investigação a Sócrates não tinha qualquer fundamento. Ora, hoje que sabemos que Sócrates mergulhou em esquemas de transferências ilícitas, a versão de pagamentos corruptos alegada por Charles Smith soa ainda mais plausível. Em relação ao Face Oculta, Pinto Monteiro assegurou que as escutas às conversas de Armando Vara com José Sócrates não continham matéria criminalmente relevante e, alinhado com Noronha de Nascimento (do Supremo Tribunal de Justiça), aplaudiu a sua destruição. No entanto, o DIAP de Aveiro e o juiz de instrução criminal, que ouviram as escutas, consideraram-nas suficientes para a investigação de um crime de atentado ao Estado de Direito – avaliação que, pela gravidade do crime, não terá sido feita de ânimo leve. Hoje, o tira-teimas é impossível, uma vez que a opção pela destruição das escutas impediu que esta decisão das mais altas instâncias da Justiça fosse escrutinada.

Mais: Pinto Monteiro, que admite simpatia por José Sócrates, almoçou com o ex-primeiro-ministro em 2014, dois dias antes de este ser preso. Segundo explicou Pinto Monteiro, foi a primeira vez que conviveu com Sócrates a sós e, informou, falaram sobre livros. Isto num contexto em que, é hoje matéria de facto, Sócrates havia sido avisado por um amigo de que, na esfera da Justiça, algo à volta da sua pessoa estaria em vias de acontecer. Nas palavras do antigo PGR, foi tudo uma “coincidência complicada”. Acontece que há mais coincidências complicadas. Nomeadamente esta: foi preciso Pinto Monteiro sair da Procuradoria-Geral da República para José Sócrates ser efectivamente investigado e acusado e, ainda mais importante, ser consensual entre os agentes da Justiça a independência do Ministério Público.

Nada disto é novo, dir-me-ão. É verdade. Mas também nenhuma novidade surgiu em relação ao caso de José Sócrates e, subitamente, a vergonha cobriu a direcção do PS. É, portanto, um tempo novo e haverá, certamente, muitas leituras políticas a avaliar a partir deste inesperado iluminamento. Uma é imediata: ficar calado deixou de ser possível e quem defender Sócrates ficará cada vez mais sozinho. Perante esta nova circunstância, seria muito interessante ouvir Pinto Monteiro romper o silêncio sobre a acusação a Sócrates, sobre os factos já assumidos pelo próprio e sobre a teia de influências que engendrou. E, sobretudo, compreender que consequências retira acerca do seu mandato na Procuradoria-Geral da República. É que uma coisa é saber-se que o mandato de Pinto Monteiro representou uma vergonha para a democracia. Outra é descobrir-se, em retrospectiva, se isso o envergonha.

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