Enquanto cidadão, não sei o que me gera maior estupefacção. Se ver Sócrates beber imperiais, satisfeito, após ter sido dado como corrompido e acusado de branqueamento de capitais no processo “Operação Marquês”,  se escutar agentes políticos de vários partidos rasgarem as vestes de indignação hipócrita pela (já esperada) decisão de Ivo Rosa (que deixou cair vários dos crimes apontados a Sócrates, Salgado e companhia). Entendamo-nos: não se descobriu há seis dias que a Justiça portuguesa tem problemas estruturais graves. E recordemo-nos: os apelos para reformar o sistema judicial têm anos, décadas até, com inúmeros episódios de incompreensão popular pela impunidade dos mais poderosos a servirem de catalisador. Portanto, se chegámos à situação actual e não se reformou adequadamente o sistema judicial foi porque alguém não quis. O que, dito de outra forma, significa que esses problemas estruturais existem porque há quem deles beneficie. Isto é óbvio? Creio que sim, mas constato que muitos se fazem desentendidos.

Um dos desentendidos é Rui Rio. O líder do PSD comentou, a propósito da “Operação Marquês”, que é necessário reformar a Justiça, mas que tal não deve ser feito a quente — isto é, sob o calor mediático das acusações a José Sócrates. Ora, Rui Rio lançou uma lapalissada e errou no foco das suas preocupações. O que inquieta o país não é o risco improvável de se legislar a quente, mas sim o facto de, sucessivamente, a frio, os agentes políticos e os interesses corporativos da Justiça bloquearem as ansiadas reformas. Repito o que escrevi acima: os problemas na Justiça perduram porque muitos na política não os querem resolver. E disto não faltam exemplos, dos quais destaco três.

Em Janeiro de 2018, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa recebeu representantes do sector da Justiça portuguesa, que se organizaram a seu pedido para negociar medidas visando uma reforma do sistema judicial, a que rapidamente se apelidou de Pacto de Justiça. Nessa altura, Marcelo desafiou os partidos políticos a avançarem na concretização dessas medidas — e disse-o sem equívocos: “Quando aqueles que trabalham no sector conseguem chegar a consenso, pergunto-me: será tão difícil assim que os partidos políticos cheguem a consenso, não direi nas 88 propostas, mas em muitas das propostas apresentadas?” Facto é que as medidas nunca saíram do papel, como desabafou o Presidente da República há três meses. PS e PSD não deixaram.

Não foi a primeira vez que se falou de Pacto de Justiça. Em 2006, sob o patrocínio do Presidente Cavaco Silva, o PSD de Marques Mendes insistiu em negociar com o PS de José Sócrates uma série de medidas reformistas para o sistema judicial. Após recusas de parte a parte, a iniciativa lá avançou. Escreveram-se as notícias, assinaram-se os acordos, tiraram-se as fotografias e o país político celebrou o acordo inédito entre PS e PSD — só equiparado às revisões constitucionais de 1989 e 1997. Mas, entretanto, Marques Mendes é substituído na liderança do PSD por Luís Filipe Menezes, o Pacto de Justiça perde ímpeto, faz-se pouco e muito vai parar à gaveta.

Mais um exemplo? Aqui vai, sob forma de pergunta: nos últimos anos, o que impediu de se avançar com medidas de combate à corrupção, nomeadamente no exercício de cargos políticos, para as quais as instituições europeias alertam sucessivamente? A resposta fica ao critério do leitor, mas os factos falam por si. Em 2018, Portugal foi o país europeu “campeão” do incumprimento, com a maior proporção de recomendações não implementadas do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção). Em 2019, o relatório da Transparency International assinalou uma derrapagem no combate à corrupção em Portugal, referindo mesmo “falta de coragem política”. No seu relatório de 2020, a mesma organização coloca Portugal na pior posição desde 2012. Entretanto, os avisos de Bruxelas sucedem-se, o último há dois meses, quando a Comissão Europeia instou Portugal a fazer mais no combate à corrupção. Só muito recentemente houve sinais menos negativos, nomeadamente com a Estratégia Anti-Corrupção apresentada pelo Governo, apesar de esta ser pouco ambiciosa. O risco, agora, é que a Estratégia seja engavetada, isto é, que PS e PSD obstaculizem no Parlamento a sua implementação — como já explicou Luís Rosa.

Tudo isto para concluir o seguinte: criticar Ivo Rosa ou gritar contra os juízes é errar o alvo. O país está compreensivelmente insatisfeito com a Justiça e sucedem-se as iniciativas de protesto contra o sistema judicial (algumas delas perfeitamente descabidas). Mas seria mais proveitoso redireccionar essa indignação contra os partidos políticos, nomeadamente o PS e o PSD. Neles habitam os grandes obstáculos às reformas — como a colonização dos tribunais pelas nomeações partidárias, o ascendente do poder político sobre os juízes, as portas giratórias que quebram a separação de poderes, a recusa de escrutínio por parte de quem exerce o poder. Os focos de atenção estão sobre os tribunais, mas o sistema doente começa nas bancadas parlamentares, que não abdicam de um sistema judicial domado pela política.

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