Afirmar que este Sínodo não vai mudar nada tornou-se uma frase comum. Mas, avisado de que ela não era justa, fui ler o documento base para os trabalhos da Assembleia Sinodal e constatei que o alerta tinha razão de ser. Depois de 43 páginas é claramente ligeiro considerar este Sínodo inútil, por os temas “picantes” não estarem convocados no debate sinodal. Arriscaria, aliás, a dizer que, se metade do que o documento preparatório propõem for aprovado, a Igreja mudará mais estruturalmente do que havendo uma rampa permissível a todas as questões polémicas. Mas vamos por partes.

Desde sempre existiram tensões entre as opções a tomar na vida da Igreja. Recentemente, houve quem acusasse o Papa de heresia, ao mesmo tempo que Francisco era acusado de não ir suficientemente longe. Para lá das barricadas, há a sensação de que as respostas da Igreja são insuficientes. O atual Sínodo insere-se neste contexto. Aberto em 2021, ele corresponde ao mais longo período de reflexão dentro da Igreja Católica desde o II Concílio do Vaticano. O objetivo: procurar um estilo “menos burocrático e mais relacional”. Mas percebeu-se que o principal problema da Igreja não é as respostas que dá, mas o método e a estrutura através da qual essas respostas são dadas. Respostas essas reflexo de uma Igreja a agir mais de cima para baixo do que como Povo de Deus.

Muitas vezes as respostas e as decisões da Igreja soam a arbitrárias, a pouco discernidas e escrutinadas, a pertencentes a uma elite. Revogar, por exemplo, a obrigatoriedade do celibato do clero, sem alterar as condições de base das relações dentro da Igreja só soaria a operação de cosmética. Porque a Igreja Católica, que após a modernidade cedo se queixou de ter sido reduzida a um supermercado religioso, nunca como agora entendeu que o primeiro passo para deixar de o ser não é queixar-se do mundo, mas reinterpretar-se a si mesma. Porque, se no séc. XX, a Igreja se entendeu como Povo de Deus, e não uma hierarquia piramidal, nem sempre a obediência dos fiéis aos pastores, gerou uma obediência dos pastores ao sentido dos fiéis.

Quando, em 1963, escreveu a Encíclica Pacem in Terris, João XXIII assinalou três sinais dos tempos: 1º) O crescimento do movimento sindical; 2º) O reconhecimento dos direitos das mulheres; 3º) O fim do colonialismo. Em 2024, o Sínodo volta e eleger três sinais dos tempos através dos quais a Igreja é obrigada a se repensar: 1º) O esgotamento relacional; 2º) A exigência de transparência; 3º) A relativização das categorias espaço e tempo.

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E como é que isso se traduz em propostas de discussão? Lendo o documento percebemos que, entre outras coisas, está em cima da mesa que as mulheres tenham o real acesso – e não apenas teórico – ao que já podem fazer na vida da Igreja, como a “coordenação de uma pequena comunidade eclesial” ou a orientação de funerais, casamentos e batizados. De facto, numa Igreja universal onde nem sempre é líquido que as mulheres possam presidir a estes momentos, o primeiro passo não pode deixar de ser encontrar formas de consolidar e promover estes passos. Por outro lado, num tempo em que se fala de reparações históricas baseadas no passado, a Igreja prefere olhar para o “colonialismo” e o “neocolonialismo, que não terminaram”, e falar em promoção de “caminhos concretos de reconciliação” e em “intercâmbio de dons” no presente. Do mesmo modo que, para combater o Cristianismo de sacristia e um certo funcionalismo Católico, o Sínodo seja claro ao pedir práticas concretas para traduzir que o “contexto primário (…) de cada batizado (…) não é a organização de atividades ou das estruturas eclesiais”, mas que acontece “na vida quotidiana, nas relações familiares e sociais”.

Mas as mudanças propostas quanto à articulação dos processos decisórios e às políticas de transparência são ainda mais fortes. Este sínodo, do qual se diz que não vai dar em nada, propõem à discussão a alteração da prática do “voto apenas consultivo”, quando se fala do valor de voto dos conselhos que auxiliam o Bispo com decisões e pareceres. Além do mais, no Sínodo está em discussão a possível obrigatoriedade da elaboração e publicação de um relatório de contas anual, “que torne transparente a gestão dos bens e recursos financeiros da Igreja”, assim como “uma prestação de contas anual sobre a evolução da missão (…) de safeguarding e de promoção do acesso das mulheres a posições de autoridade”, para não falar da implementação de “procedimentos de avaliação periódica do desempenho de todos os ministérios e atribuições no seio da Igreja”. Para uma Igreja onde, como o próprio documento sinodal assume, a autoridade pode redundar em capricho, este seria um dos passos mais importantes.

Além de tudo isto, o documento que funciona como instrumento de trabalho para a reflexão destes dias, diz explicitamente, quando fala, por exemplo, das paróquias, que “o lugar já não pode ser entendido em termos puramente geográficos e espaciais”, realçando, por um lado, que os lugares, também na Igreja, “não são apenas espaços, mas também áreas e redes que permitem o desenvolvimento de relações, e que, por outro, ainda não se tirou total partido “da grande plasticidade da Paróquia”. Ou seja, é de prever que o Sínodo traga diretrizes para a adaptação das estruturas organizativas base da Igreja de acordo com os novos dinamismos de mobilidade social.

Noutra linha, o Sínodo está também a discutir de que maneira os vários conselhos, que fazem parte da orgânica da Igreja, podem deixar de ter membros unicamente designados pela autoridade eclesiástica, e de que forma os conselhos cuja instituição é só “discricional”, podem passar a ser obrigatórios. E é na medida em que se propõem a discussão de propostas para a descentralização do poder, que o Sínodo lança a possibilidade de se “reconhecer as Conferências Episcopais como sujeitos eclesiais dotados de autoridade doutrinal”, o que, pressupõem, que a “doutrina” pode ser acolhida dentro da “diversidade sociocultural”, sem ofensa à unidade da Igreja.

Agora, posto isto, o Sínodo até pode não dar em nada, mas algo é certo: não é isso que prometeu.