Poucos têm orgulho, e ainda bem, em serem acusados de racistas. Ou de pedófilos. Ou de nazis, ou comunistas. O lastro moralmente reprovável para que estes termos remetem, ou deveriam remeter, sinaliza comportamentos ou ideias condenáveis, sendo que condenável é, naturalmente, um juízo moral. Usar um termo para identificar e repreender um comportamento socialmente inaceitável data de tempos imemoriais.
Até aqui nada de novo ou surpreendente. A novidade está em usar o poder do discurso para condicionar com palavras as ideias que alguém ache reprováveis. Ou seja, em vez de as palavras admoestarem comportamentos que a amálgama sociológica a que chamamos sociedade considera reprováveis, servem agora para condicionar o pensamento.
Um exemplo: alguém diz algo, ainda que factual, de que um determinado grupo não gosta. Meia dúzia rotula-o de racista e xenófobo, machista ou misógino, tentando desta forma silenciá-lo, e, mais grave ainda, criar um precedente, uma jurisprudência do discurso. Quem se atrever a tocar nestes assuntos será logo apelidado de racista, e ninguém quer ser racista. Uma polícia do discurso, bem dizendo. Basta acompanhar a actualidade política partidária para perceber que se usa e abusa da palavra racista com uma leviandade perigosa.
Tudo isto está a atingir níveis cujos precedentes históricos jazem nos escombros dos regimes despóticos, mas não em sociedades que se querem livres, democráticas e abertas. Um artigo recente do jornal Público ilustra-o bem. Intitulado “Portugal é dos países da Europa que mais manifestam racismo”, nele se diz que Portugal é dos países mais racistas em dois eixos: o “biológico” e o “cultural”. No biológico, pois há quem acredite que existem raças ou etnias superiores; no cultural, pois há quem acredite que existem culturas superiores. O destaque não é o conteúdo do artigo, é o próprio artigo e os termos em que é apresentado.
Uma das perguntas referida no artigo, que foi colocada a estudantes universitários portugueses, era a seguinte: “Pensando no mundo hoje, diria que há culturas muito melhor do que outras ou que todas as culturas são iguais?”. Antes de responderem, alguns leitores colocarão em perspectiva algumas das culturas que conhecem. Olham para a cultura Ocidental, ancorada numa matriz judaico-cristã (seja ou não seja religioso, acredite ou não em Deus é irrelevante, essa é a nossa herança), que se pauta, não obstante os ocasionais atropelos, pela liberdade individual e pela igualdade entre os indivíduos, por um Estado secular, pela tolerância. Depois recordam-se, por exemplo, de correntes islâmicas mais radicais, como a salafista, que acredita que é uma blasfémia a lei que não a de Deus, que rejeitam interpretações do Corão (o Corão é a palavra de Deus, logo não sujeita a interpretações antropológicas e contextos históricos) e que desejam restituir a Sharia (a lei tal como Maomé a enunciou no século VII). Acreditam num Estado religioso, onde a lei traduz apenas uma concepção moral, a do Islão. Uma sociedade profundamente machista, na qual a mulher tem um papel subalterno, onde homossexuais são perseguidos, quando não assassinados, e onde traições amorosas levam a barbáries, como queimar a face com ácido ou apedrejamento. Perante isto conclui que existem culturas superiores, nomeadamente a sua.
Pois bem, é um “racista cultural”, pelo menos segundo o artigo do Público. Mas não está sozinho: está acompanhado por países como a Noruega, a Dinamarca, a República Checa ou a Grã-Bretanha (Portugal ocupa um honroso 5.º lugar). Nada disto seria grave não fosse o corolário do artigo — se acredita numa moral universal, num quadro de valores não sujeito a contextos culturais, se acredita que existe uma ética que se aplica a indivíduos independentemente da cultura, raça, sexo, religião, nacionalidade ou orientação sexual, e que, por conseguinte, culturas que a violam são erradas ou inferiores, então é um “racista cultural”. E esta não é uma posição sequer extrema, pelo contrário — a Declaração Universal dos Direitos Humanos baseia-se precisamente na tese de que existem valores universais.
E é assim que um grupo procura condicionar o pensamento e o discurso. Ao apelidar de racista todos aqueles, neste caso os que possam achar, por reflexão ou por contemplação, que existe uma ética universal, um imperativo categórico que nos impele a defender princípios fundamentais, procura-se, dessa forma, criar um binómio moral, um maniqueísmo discursivo, onde do lado correcto estão uns e do lado errado estão os outros, os racistas — onde ninguém razoável e moderado quer certamente estar.
Entramos, como tal, no terreno pantanoso do relativismo cultural, em que não existem culturas boas e más. Bons e maus são aqueles que ousem dizer que há culturas e culturas. As implicações disto são significativas: que legitimidade existe para condenar alguém que decide forçar a sua filha à prática de excisão feminina? Afinal, são meras opções que derivam de culturas e de sistemas de valores distintos, não comparáveis. Se aceitamos que são todas iguais, se aceitamos que nenhuma deve prevalecer, por que motivo haveríamos de barrar na lei essa possibilidade?
O efeito é real. Em dezembro de 2016, decorreu uma marcha em Inglaterra, com milhares de muçulmanos a exigirem a implementação da lei da Sharia. Os radicais islâmicos não abdicarão da sua posição moral, que consideram justa e superior, pois essa é a natureza etnocêntrica do ser humano. O problema está, como o artigo parece evidenciar, em haver demasiada gente no Ocidente disposta a abdicar da sua, ou não vá ser acusado de “racista cultural”. Estamos mesmo disponíveis para abdicarmos dos valores sobre os quais se erigiu a sociedade aberta e livre, e um mundo melhor?