O embate entre Joe Biden e Donald Trump está a pouco mais de um verão de distância; até ao dia 5 de novembro o caminho será penoso e provavelmente com mais incidências do que as que a extensão do Atlântico nos permitirá acompanhar.

Nos últimos meses os dois candidatos enfrentaram, direta ou indiretamente, a verticalidade da espada da Justiça. E a reação de ambos ao veredito do Direito marca uma diferença fundamental na maneira de olharem para tudo aquilo que é essencial e realmente determinante numa Democracia e num Estado de Direito. Vejamos.

No dia 30 de maio de 2024 Donald Trump tornou-se o primeiro Presidente (ex-Presidente, sem prejuízo de no sistema norte-americano a expressão ser utilizada para o atual e todos os anteriores) dos EUA a ser considerado culpado pela prática de crime. Estavam em causa 34 acusações, todas em relação a um esquema fraudulento para pagar o muito badalado hush money a Stormy Daniels. “Culpado”, foi o veredito dos 12 jurados do caso. A pena será conhecida a 11 de julho.

Talvez fosse possível de antever, mas efetivamente Trump não hesitou nem se poupou nas qualificações, nos ataques e ameaças feitas nas horas seguintes: reiterou que o sistema de Justiça está viciado (rigged) e que o veredito foi uma desgraça, decidido por um juiz corrompido. Tanto o próprio ex-Presidente como algumas das suas mais próximas figuras referiram que o julgamento foi politicamente liderado pelos Democratas (e em última instância por Joe Biden), e que Trump é vítima de uma “caça às bruxas”. Na sequência, o ex-Presidente atacou repetidamente a filha do juiz responsável pelo caso (Juan Mercan), sem prejuízo de ser seguro dizer que já vinha demonstrando uma especial predileção por ameaçar e desrespeitar juízes e jurados antes, durante e depois do seu mandato como Presidente.

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O embate nas urnas está a pouco mais de um verão de distância. A pré-campanha já decorre e a máquina do ex-Presidente tinha de reagir rapidamente a uma situação de crise. E fê-lo: logo que foi conhecida a decisão judicial, a campanha de Trump instrumentalizou a condenação em apelos para uma bem sucedida recolha de fundos (que recolheu 54 milhões de dólares nas 24 horas seguintes ao veredito), e não hesitou em tratar Donald Trump como um prisioneiro político. No dia seguinte (31 de maio) e a partir do átrio da torre Trump (onde no início do verão de 2015 anunciou a sua candidatura às eleições de 2016), o ex-Presidente fez mira, novamente, às mais básicas emoções dos seus seguidores: “Se eles podem fazer isto comigo, podem fazer isto com todos vocês”.

A narrativa tem traços quase tribais: continua a descrever o veredito como corrupto e fraudulento e a reduzir o sistema judicial norte-americano a um fantoche ao serviço de Biden, mas não consegue nomear qualquer dimensão ou elemento do processo em que de facto tenha havido uma análise errada, demonstrando-o com factos. Trata-se de um meticuloso, ponderado e repetido ataque às mais importantes instituições do país.

Poucos dias depois de Trump, a 11 junho foi a vez de Hunther Biden, filho de Joe Biden, ser considerado culpado por ter mentido quando, ao comprar uma arma, disse não ter nenhum problema de adição com droga, declaração que se veio a revelar falsa.

Perante o veredito em relação ao filho, o Presidente dos EUA começou por relembrar a sua dupla condição de Presidente dos EUA e de pai do condenado: “Eu vou aceitar o veredito do caso e vou respeitar o processo judicial.” Poucos dias antes da decisão ser conhecida Joe Biden já tinha referido – vindo depois a reitera-lo – que não utilizaria o seu poder presidencial para perdoar uma eventual sentença de condenação. Contudo, e apesar de não ter comentado este cenário, crê-se não estar totalmente afastada a possibilidade de o atual Presidente vir a amenizar a sentença do filho.

Estes dois momentos extravasam, de certo modo, uma leitura restrita do âmbito da governação e da capacidade de um e outro candidato executarem eficazmente as políticas públicas que defendem, mas são sintomáticos de um entendimento muito distinto sobre o modo como deve funcionar o Estado de Direito. E para um líder mundial num clima de tensão, esse entendimento é determinante.

É inútil repetir que Joe Biden não é o Presidente que os EUA necessitam para enfrentarem os desafios, ameaças e obstáculos, internos e externos, que os próximos anos acarretarão. Se ganhar as eleições de novembro (a generalidade das sondagens têm dado uma ligeira vantagem a Trump), Biden começará o mandato seguinte com 82 anos. A falta de energia e força são evidentes, como o são, também, sinais de um intermitente condicionamento intelectual. Tudo isto é indubitavelmente incompatível com o exercício do cargo de Presidente daquela que – ainda – é a maior potência mundial. Além disso, falta à campanha de Biden algo importantíssimo: uma mensagem marcante e inspiradora, que vá além das críticas aos perigos que uma nova presidência de Trump pode consubstanciar.

Mas se Biden é tudo isto que sabemos, Trump tem vindo a dissipar quaisquer dúvidas de que quer jogar num tabuleiro diferente: coloca em causa o sistema eleitoral, ataca e ameaça figuras do processo judicial e não respeita os mais básicos alicerces da organização institucional dos EUA. Em abril deste ano um repórter perguntou-lhe se haveria violência no caso de perder as eleições de 2024. “I don’t think we’re going to have that. I think we’re going to win,”, respondeu. “But if you don’t win, sir?”, “If we don’t win, you know, it depends. It always depends on the fairness of an election,”

Que os norte-americanos tenham de escolher entre Joe Biden e Donald Trump como os mais proeminentes líderes políticos no ativo é um sintoma indubitável da degradação a que a antiquíssima democracia daquele país chegou. Mas há uma diferença fundamental entre estes dois candidatos, e a idade não é certamente a mais significativa (apesar de evitar ao máximo trazer esse tema para a campanha, Trump tem 78 anos); Donald Trump não pretende só derrotar Biden e os Democratas para se tornar novamente Presidente dos EUA, aspiração totalmente legítima e aceitável no bom espírito do debate político e do confronto democrático. Trump quer exorcizar as instituições, concentrar indefinidamente os poderes em si e perseguir não só os que dele discordam, mas até os camaradas que não lhe mostraram lealdade absoluta.

Joe Biden é uma má escolha para Presidente dos EUA. Mas entre os dois, é o único candidato que respeita as mais basilares e essenciais regras do jogo democrático. Este motivo não deveria ser suficiente para apoiar um candidato. Mas é o bastante para termos a certeza que nunca vamos apoiar quem faça o contrário.